Por Ruam de Oliveira
A feijoada é uma adaptação de outras receitas que os portugueses trouxeram quando vieram para o Brasil. Ao observar a história na tentativa de descobrir como surgiu a receita, pouco se sustenta a ideia de que o prato foi criado no Brasil e que melhor descreva a culinária local.
Seja na quarta-feira ou no sábado, em bares, botecos ou reuniões entre amigos e familiares, o feijão gordo, acompanhado de lombo defumado, orelha, língua e pés de porco, uma farofinha e couve refogada representa uma mistura do que mais brasileiro pode existir no cardápio nacional, certo? Talvez não.
Esse feijão com todos os acompanhamentos, também conhecido como a famosa feijoada, alçou o lugar de símbolo da culinária nacional, o prato típico brasileiro, porém de forma errônea. Ao observar a história na tentativa de descobrir como surgiu a receita desse prato, pouco se sustenta a ideia de que a feijoada foi criada no Brasil e que melhor descreva a culinária local, devendo, por isso, ser vista como símbolo.
O mito da feijoada como prato típico nacional tem sido perpetrado pela mídia e em livros de história há bastante tempo. No livro Um, dois, feijão com arroz: a alimentação do Brasil de norte a sul (2002), o nutrólogo Mauro Fisberg aponta que os escravos aproveitavam rabo, orelhas e pés de porco – partes do animal que eram, supostamente, rejeitadas pelos senhores – e cozinhavam-nos com o feijão-preto. Assim surgia a proto-feijoada.
Essa é a história que mais foi disseminada quanto às origens do prato. No entanto, ela é falsa. Pedro Marques e Marcelo Spiller, autores do estudo “Feijoada: a construção de um símbolo nacional”, destacam que, apesar de ser uma versão interessante, não é correta.
Tal como a consumimos – com bisteca, carne-seca, linguiças, couve etc – a feijoada pode ser considerada exclusivamente brasileira. Ingredientes como o feijão-preto e a farinha, por exemplo, foram introduzidos às receitas e formas de preparo de pratos já existentes na Europa, que os portugueses trouxeram quando vieram para o Brasil. Ou seja, a feijoada de hoje é uma adaptação de outras receitas, muitas vezes comparada com o cassoulet francês e o puchero, originário da Espanha.
Cozinhar alimentos em líquido e apreciar partes do porco que aqui não são vistas como nobres era parte da culinária portuguesa. Um exemplo é a feijoada trasmontana, oriunda da província de Trás-os-montes, em Portugal, onde o feijão-roxo era misturado à orelha, pé e rabo de porco e linguiças defumadas, entre outros ingredientes.
A historiadora Mary del Priore, autora da trilogia Histórias da gente brasileira, destaca que a feijoada sequer foi citada no século XIX. Ela aponta que os portugueses seguiam algumas tradições mediterrâneas de misturar vários tipos de carnes, legumes e verduras. “Aqui o feijão branco foi substituído pelo preto, mas a combinação com carnes de porco é tradicional”, escreveu.
Pedro Marques, pós-graduado em cozinha brasileira pelo Senac, aponta que o problema está em dizer que esse é um prato criado no Brasil, fruto da influência equilibrada de índios, escravos africanos e portugueses. “Nunca houve harmonia entre esses povos, o português sempre dominou essa questão”, disse Marques em entrevista à ComCiência.
Essa corrente de pensamento foi atribuída pelos autores aos modernistas que, em sua jornada para criar “símbolos de brasilidade”, se apropriaram da ideia de país mestiço que o Brasil tem (e que à época estava em formação) e transpuseram para a gastronomia local a noção de contribuição igualitária dada pelos povos que aqui viviam.
“É comum que mesmo quem more em locais onde este não é um prato do dia a dia se sinta ofendido quando se questiona a identidade da feijoada, como algo que reúne à mesa portugueses, negros e índios. É como se a identidade dela estivesse sendo colocada à prova”, disse.
A composição era vista da seguinte forma: o feijão, contribuição africana; a farinha de mandioca e a farofa, vindas dos índios; e as carnes do porco, dos portugueses. No entanto, afirmar que, por essa perspectiva, a feijoada passa automaticamente a ser um prato nacional reduz o fato de que os portugueses detinham um peso de decisões muito superior aos demais, algo que se refletiu na culinária.
O jornalista e crítico gastronômico Arnaldo Lorençato, porém, diz não concordar com essa associação feita aos modernistas. “Esse mito não existe e é resultado de escritos descuidados recentes, de uma confusão com o filme de Joaquim Pedro de Andrade, que se baseia em Macunaíma, de Mário de Andrade”, explica.
“No livro modernista, um quase romance, o regatão peruano Venceslau Pietro Pietra tenta cozinhar o herói da nossa gente, Macunaíma, numa macarronada. Ao fazer a adaptação para o cinema, o diretor transformou o prato italiano numa feijoada. Essa licença poética acabou sendo atribuída equivocadamente aos modernistas. Está errado e sem sentido algum. É fundamental não perpetuar, não levar esse erro adiante”, ressalta o crítico.
Tanto índios como negros e portugueses possuíam práticas de alimentação diferentes e que, até certo ponto, nada tinham de especial, como hoje é costume tratar a feijoada. “A alimentação do negro numa propriedade abastada compõe-se de canjica, feijão-preto, toucinho, carne seca, laranjas, bananas e farinha de mandioca”, descreveu o pintor Jean-Baptiste Debret. O relato está no livro Histórias da gente brasileira – colônia, de Del Priore, que é professora de história da Universidade Salgado de Oliveira, no Rio de Janeiro.
É inegável que a junção de ingredientes do cotidiano de índios, negros e portugueses produziu um alimento que, atualmente, não é nada ordinário. “Apesar de ser servida também às quartas-feiras (pelo menos em São Paulo), a feijoada está mais para uma comida de festa. Você deixa para comer uma feijoada no fim de semana, em casa, ou no restaurante, com tempo para descansar (e digerir)”, aponta Pedro Marques, que também é editor da revista Menu, especializada em gastronomia.
“Falar em prato ordinário é tão sem sentido quanto dividir carnes entre em categorias, as de primeira e as de segunda. A feijoada é um prato trabalhoso, feito com carnes secas e embutidos, o que reflete um Brasil rural e que não tinha sistema de conservação moderno, como a geladeira doméstica. É de uma riqueza de paladar enorme. Mas não é uma iguaria”, ressalta Lorençato, que atua como crítico gastronômico há mais de 25 anos.
O que faz um prato ser eleito como prato típico nacional?
Seja feijoada, virado à paulista ou moquecas, um prato típico deve servir de identificação de uma nação. Mas não só. De acordo com Pedro Marques, tais símbolos culinários existem para designar a importância de determinado alimento para uma população específica e tem muito a ver com tradições à mesa.
Para que um prato seja considerado típico de um país ou região, ele precisa, de acordo com Marques, ser composto por ingredientes locais, ter alguma popularidade e ser reconhecido com facilidade pelas pessoas. “A cozinha brasileira possui dezenas de pratos típicos: moqueca, churrasco, maniçoba etc. Alguns, porém, estão mais ligados a uma determinada região e não têm alcance nacional”, disse.
No caso da feijoada, ela também é descrita como prato tipicamente brasileiro por conta de sua ampla representação nacional. Lorençato descreve o prato como “um feijão que completa o arroz do dia a dia com mais substância e riqueza de ingredientes. Além da clássica versão, a carioca é preparada com outros tipos de feijão e, no Nordeste, ganha o acréscimo de várias outras hortaliças. A Amazônia nos brinda com a maniçoba, que substitui o feijão pelas folhas de mandioca processadas. É feijoada à moda indígena, um luxo do receituário nacional”.
Atualmente existem diversas modalidades de feijoada, já seguindo as adaptações tão presentes na história do prato. Há a versão light, sem as partes consideradas “menos nobres”, há a versão vegetariana e até mesmo uma feijoada de frutos do mar, encontrada em regiões litorâneas do país. Essas alterações estão associadas mais aos costumes atuais do que a uma espécie de “refinamento da receita”. Como prato, diz Pedro, a feijoada e seus elementos (arroz, farofa, couve) estão muito bem definidos. “O resto é acessório”.
Ruam de Oliveira é jornalista (UPM) e aluno do curso de especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)