Mudanças climáticas e arboviroses

Por Tamara Nunes de Lima Camara

A dinâmica de doenças que envolvem um hospedeiro vertebrado, um vírus e um mosquito vetor é dependente de alguns fatores que influenciam a transmissão. No caso da febre amarela, aspectos relacionados ao clima, como a pluviosidade e a temperatura, têm grande influência na dinâmica de transmissão: a primeira por promover a oferta de criadouros naturais dependentes da água da chuva para mosquitos silvestres e a segunda por assegurar uma maior rapidez de fêmeas adultas capazes de transmitir o vírus causador dessa arbovirose.

Dentro do reino animal, sem dúvida alguma, o filo Arthropoda é o mais diverso e abundante, com mais de um milhão de espécies descritas. Os artrópodes são invertebrados caracterizados por apresentarem pernas articuladas, corpo segmentado e exoesqueleto quitinoso. A temperatura e outros aspectos relacionados ao clima influenciam diversos aspectos do ciclo de vida desse grande grupo, em que encontramos os caranguejos e camarões, as aranhas e carrapatos, as lacraias e gongolos, e os insetos.

Sendo o maior grupo do filo Arthropoda, os insetos estão agrupados em ordens e, morfologicamente, são identificados pelo corpo dividido em três segmentos (cabeça, tórax e abdômen), três pares de pernas, localizadas no tórax, e um par de antenas na cabeça. A maioria dos insetos adultos também possui asas. A grande importância dos insetos na natureza e para o homem recai no fato de muitos servirem como fonte de alimento, agentes polinizadores, pragas agrícolas e vetores de agentes patogênicos. Algumas ordens de insetos possuem importantes representantes de transmissores de agentes causadores de doenças humanas, como a ordem Hemiptera, onde encontramos os barbeiros que transmitem o protozoário causador da doença de Chagas, a ordem Siphonaptera, onde estão as pulgas vetoras da bactéria que causa a peste, e a ordem Diptera, composta pelos flebotomíneos, simulídeos, moscas e mosquitos.

Os mosquitos compõem a família Culicidae e nela encontramos os vetores dos prozoários do gênero Plasmodium, causadores da malária, do verme nematoide Wuchereria bancrofti, que provoca a filariose ou elefantíase, e de arbovírus que causam a dengue, a chikungunya, a zika, a febre do oeste do Nilo, a febre amarela, dentre outras.

Os mosquitos apresentam desenvolvimento holometábolo, com as fases de ovo, larva (com 4 estádios), pupa e adulto. Nesta última fase, está a grande importância médica desses insetos, pois a grande maioria das fêmeas de mosquitos adultos é hematófaga, ou seja, alimentam-se de sangue. É a partir da alimentação sanguínea que as fêmeas de mosquitos transmitem os patógenos que albergam ao homem. Para a transmissão de arbovírus ao homem, por exemplo, é necessário que uma fêmea de mosquito infectada se alimente do sangue de um indivíduo susceptível. Similarmente, de modo geral, uma fêmea de mosquito é infectada quando se alimenta do sangue de um hospedeiro vertebrado infectado.

Ao sugar o sangue de um hospedeiro infectado, a fêmea de mosquito suga também o vírus, que vai para o estômago do inseto. Rapidamente, o vírus infecta as células epiteliais do estômago e alcança a hemolinfa, para, finalmente, atingir as glândulas salivares. A fêmea de um mosquito somente estará apta a transmitir o vírus que alberga para um hospedeiro susceptível quando o patógeno atingir as glândulas salivares. O intervalo que compreende a alimentação sanguínea pela fêmea em um hospedeiro infectado e a chegada do vírus à glândula salivar do mosquito é denominado período de incubação extrínseco (PIE) e tem duração variável, dependendo da temperatura, por exemplo. Para o vírus da febre amarela, o PIE é de 7 a 12 dias, podendo chegar a 12 dias a 18ºC e a apenas 2 dias a 30ºC.

Clima e ciclos da febre amarela

A febre amarela é uma doença viral endêmica em áreas tropicais e subtropicais da América do Sul e da África. Na África, apresenta-se sob três ciclos de transmissão: silvestre, intermediário e urbano. Já na América do Sul, apenas os ciclos silvestre e urbano estão presentes. Tanto a febre amarela silvestre quanto a urbana são causadas pelo vírus amarílico, da família Flaviviridae e gênero Flavivirus. As diferenças entre os ciclos silvestre e urbano recaem no mosquito vetor, no hospedeiro vertebrado e no ambiente de transmissão. Enquanto o ciclo silvestre ocorre em áreas de mata, envolvendo mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, e primatas não humanos, especialmente dos gêneros Alouatta, Callithrix, Ateles e Cebus, o ciclo urbano desenvolve-se em ambientes antropizados, com a participação do mosquito Aedes aegypti como vetor e do homem como hospedeiro vertebrado. A partir do desenvolvimento de uma vacina eficiente de febre amarela, em 1937, o último caso urbano dessa doença foi registrado em 1942, na cidade de Sena Madureira, no Acre.

Entretanto, epizootias em primatas não humanos e casos humanos de febre amarela silvestre são reportados anualmente, principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, onde ela é considerada endêmica. Entretanto, casos de febre amarela em primatas não humanos e humanos já foram reportados nas outras regiões do país e, em 2017, novos registros começaram a ocorrer em áreas de Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro, porém todos relacionados à forma silvestre.

Mas qual seria a relação das mudanças climáticas com a febre amarela? Inicialmente, devemos entender como as alterações climáticas vêm ocorrendo ao longo dos últimos anos. O planeta Terra é protegido por um tipo de cobertor natural composto, principalmente, por vapor d´água, dióxido de carbono e ozônio. Esse cobertor é responsável por um fenômeno de efeito estufa natural, que mantém o planeta a uma temperatura ótima, que garante a sobrevivência de diferentes formas de vida.

Entretanto, desde a Revolução Industrial, no século XVIII, a emissão de gases na atmosfera, especialmente o gás carbônico, foi intensificando o efeito estufa, causando um aumento gradual da temperatura no planeta. Tal alteração tornou-se alvo de preocupação para muitos cientistas, que se organizaram para formar o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês). O principal objetivo do IPCC é avaliar informações técnicas, científicas e sociopolíticas do mundo inteiro, a fim de melhor compreender as alterações climáticas.

Dessa forma, já foi estimado, por exemplo, que a temperatura global aumentou cerca de 1ºC de 1880 a 2012, devido, especialmente, a ações antrópicas que envolvem a liberação de gás carbônico na atmosfera. Caso a emissão de gases de efeito estufa não seja controlada, a previsão, segundo alguns modelos, é que, no final do século XXI, a temperatura média global aumente de 1.8ºC a 4ºC. O impacto desse aumento poderá ser sentido em diversas áreas do mundo: para 2030-2040, o risco de expansão de doenças transmitidas por vetores na América do Sul é elevado caso não ocorra alguma intervenção. Risco similar é previsto para o continente africano no mesmo período.

Mudanças climáticas podem afetar a dinâmica de doenças transmitidas por vetores por meio da alteração do ciclo de vida e da distribuição global do vetor, bem como do desenvolvimento do vírus dentro do mosquito. O desenvolvimento dos mosquitos pode ser afetado por algumas variáveis abióticas, como a temperatura. O ciclo de vida dos mosquitos é holometábolo, com as fases de ovo, larva, pupa e adulto. O tempo que leva para um ovo virar um mosquito adulto é por volta de 10 dias, mas esse intervalo pode ser maior ou menor, de acordo com a temperatura do ambiente.

Na literatura, existem alguns trabalhos que testaram, sob condições de laboratório, o tempo de desenvolvimento de mosquitos vetores em diferentes temperaturas. Um dos estudos mostrou que Ae. aegypti precisa de quase 9 dias para completar seu ciclo de ovo a adulto quando exposto a 25ºC, e o aumento de apenas 2ºC na temperatura reduz esse tempo de desenvolvimento para cerca de 7 dias.

Efeito similar foi observado para a espécie Aedes albopictus, considerado vetor potencial dos arbovírus dengue, zika, chikungunya e febre amarela no Brasil. Isso quer dizer que Ae. albopictus consegue se infectar e transmitir com sucesso todos esses vírus em condições artificiais de laboratório, mas não foi incriminado ainda como um transmissor efetivo desses patógenos no país. O tempo de desenvolvimento de ovo a adulto de Ae. albopictus também foi mais rápido quando exposto a temperaturas mais altas. Dessa forma, o aumento da temperatura global de 1ºC ou 2ºC já seria suficiente para reduzir o tempo de desenvolvimento de algumas espécies de mosquitos, contribuindo para o aumento da população desses vetores.

Além disso, o PIE também pode ser afetado pela temperatura. Estudos realizados em laboratório mostram que o aumento da temperatura reduz o PIE de alguns sorotipos do vírus dengue em Ae. aegypti. Levando em consideração que o Ae. aegypti também é o principal vetor dos vírus da zika, chikungunya e da febre amarela urbana, e que o PIE é um importante elemento da dinâmica de transmissão viral, o aumento da temperatura global poderia ter um impacto positivo na transmissão desses patógenos por esse mosquito. Paralelamente, a distribuição de mosquitos vetores é limitada por variáveis climáticas, como temperatura, umidade e pluviosidade. Tais elementos são essenciais para estudos com modelos de distribuição de doenças transmitidas por vetores. Alguns estudos que abordam o efeito das mudanças climáticas associadas ao aumento da temperatura na distribuição do Ae. aegypti, por exemplo, apontam para a potencial expansão desse vetor para novas áreas.

Re-emergência da febre amarela urbana e considerações finais

O recente registro de casos de febre amarela humana em áreas não endêmicas do Brasil levantou novamente a preocupação da re-emergência da febre amarela urbana no país. O receio é real, devido à grande proximidade das epizootias a grandes cidades e também pela facilidade e rapidez que o homem consegue deslocar-se de um local para o outro atualmente. Dessa forma, uma pessoa que foi infectada em área rural poderia retornar à cidade e servir de fonte de infecção para o Ae. aegypti.

Outra preocupação em relação à re-emergência da febre amarela urbana no Brasil está associada ao comportamento eclético quanto à escolha do hospedeiro para o repasto sanguíneo apresentado por alguns mosquitos. Um exemplo é o já citado Ae. albopictus que, no Brasil, é considerado silvestre, sendo encontrado do lado de fora das casas e se alimenta do sangue de diferentes vertebrados. Entretanto, essa espécie também vem sendo encontrada em ambientes semiurbanos, onde o homem está mais presente e há cobertura vegetal próxima. Sendo vetor potencial do vírus da febre amarela, o comportamento eclético apresentado pelo Ae. albopictus em relação à escolha de um hospedeiro vertebrado para sugar sangue, bem como a presença tanto em ambientes silvestres como semiurbanos, torna essa espécie uma possível ponte de transmissão desse arbovírus.

A dinâmica de doenças que envolvem um hospedeiro vertebrado, um vírus e um mosquito vetor é dependente de alguns fatores que influenciam a transmissão. No caso da febre amarela, aspectos relacionados ao clima, como a pluviosidade e a temperatura, têm grande influência na dinâmica de transmissão: a primeira por promover a oferta de criadouros naturais dependentes da água da chuva para mosquitos silvestres e a segunda por assegurar uma maior rapidez de fêmeas adultas capazes de transmitir o vírus causador dessa arbovirose, através da redução do PIE.

Adicionalmente, a transmissão da febre amarela também está associada ao rápido crescimento populacional, à urbanização e à globalização dos meios de transporte. Atividades antrópicas relacionadas ao desmatamento para construção de rodovias ou para práticas de mineração e agricultura promovem o encontro do homem susceptível com os vetores silvestres da febre amarela. A rápida urbanização e o crescimento desordenado das cidades dão margem ao estabelecimento de uma infraestrutura de saneamento básico precária nesses locais, promovendo o armazenamento inadequado de água em recipientes que podem servir como criadouros para o Ae. aegypti. Além disso, os meios de transporte facilitaram o rápido deslocamento de pessoas susceptíveis para áreas endêmicas de febre amarela silvestre. No sentido oposto, pessoas infectadas com o vírus da febre amarela oriundas de áreas endêmicas poderiam levar o vírus para ambientes urbanos.

Dessa forma, é plausível aceitar que a expansão de casos da febre amarela ou a re-emergência do ciclo urbano dessa doença não esteja relacionada somente ao fenômeno do aquecimento global. Assim como outras arboviroses, a dinâmica de transmissão da febre amarela é multifatorial e complexa, envolvendo aspectos não apenas climáticos, mas também relacionados aos mosquitos vetores, ao homem e demais hospedeiros vertebrados e ao próprio vírus. Não se pode deixar de lado também aspectos econômicos, políticos e sociais de cada região, que podem amenizar ou intensificar a transmissão da febre amarela. Assim, campanhas para a redução de ações antrópicas que têm impacto no clima global, bem como a manutenção de uma política ativa e contínua de controle do Ae. aegypti e do Ae. albopictus, vigilância de casos humanos e epizootias de febre amarela e aumento da cobertura vacinal, são essenciais para tentarmos conter a expansão e a re-urbanização dessa doença no país.

Tamara Nunes de Lima Camara é professora do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP. Possui mestrado e doutorado em ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia Parasitária da Fundação Oswaldo Cruz –IOC/RJ. 

Referências

Galati, E. A. B.; Lima-Camara, T. N.; Natal, D.; Chiaravalloti-Neto, F. “Mudanças climáticas e saúde urbana”. Revista USP 2015; 107: 79-90.

IPCC 2014. Disponível em: https://www.ipcc.ch/pdf/assessment-report/ar5/syr/SYR_AR5_FINAL_full_wcover.pdf. Acesso em 29 de maio de 2017.

Lima-Camara, T.N.; Honório, N. A. “Climate change and its effect on urban mosquitoes in South America”. In: Climate change impacts on urban pests. Partho Dhang (ed.) CAB International, 2017.

Reiter, P. “Climate change and mosquito-borne disease”. Environ Health Perspect. 2001 mar; 109 Suppl 1:141-61.

Tabachnick, W. J. “Climate change and the arboviruses: lessons from the evolution of the dengue and yellow fever viruses”. Annu Rev Virol. 2016; 3:125-145.