Por Flávio Batista Ferreira
A concepção de educação superior de Clark Kerr, presidente da Universidade da Califórnia entre 1958 e 1967, serviu à estruturação de sistemas organizados de forma verticalizada, estratificada e hierarquizada por diferentes instituições de modo a preservar uma pequena elite de instituições de pesquisa e pós-graduação no topo da estrutura e instituições de ensino na base que pudessem responder às necessidades de massificação. No Brasil, a diferenciação que protege as instituições de pesquisa não decorre de um plano diretor como o da Califórnia, mas da separação entre oferta pública e privada de educação superior.
A educação é própria dos seres humanos. Ela é a apropriação da cultura produzida pela humanidade historicamente. É o fenômeno pelo qual a cultura, como herança social, é adquirida pelas sucessivas gerações. Essa herança é formada por conhecimentos, moral, arte, leis, costumes, crenças, aptidões e hábitos produzidos pelo homem como membro da sociedade. O homem é o único ser capaz de produzir cultura. Os outros animais submetem-se à natureza, enquanto o homem a subverte, intervindo nos processos naturais, transformando-os. A educação intensifica e permite a continuidade dessas ações que marcam a especificidade humana[1].
Partindo dessa definição, a finalidade da educação é justamente permitir que o homem, através da apropriação da cultura acumulada, possa produzir-se como ser histórico, como uma criatura do seu tempo. Ao apropriar-se da herança social, o homem a altera e a torna coerente com as questões atuais e com o estágio da humanidade em que se encontra.
A educação é um fenômeno social que ocorre pela ação de cada sujeito do processo educativo em suas relações com outros sujeitos e com o ambiente. Tem uma dimensão privada, que é pessoal, própria de cada educando e orientada pelas motivações e perspectivas individuais, mas sobretudo tem uma dimensão pública, motivada pelo interesse coletivo, pelas relações sociais e orientada para o desenvolvimento da humanidade.
As instituições escolares não são os únicos espaços sociais em que a educação acontece, visto que o educando é o sujeito do processo educativo e está construindo-se historicamente em todos os espaços sociais que vivencia. Porém, é nas instituições escolares que a sociedade de forma consciente e intencional mobiliza recursos para que a dimensão pública da educação aconteça. A instituição escolar tem como finalidade dar as condições, através da mobilização de diferentes recursos, para que o homem possa apropriar-se da cultura em favor da sociedade. A escola não é a protagonista do processo educativo, visto que a educação não tem como fim o exercício das atividades de ensino ou de qualquer outra ação pedagógica. A escola, as aulas, as atividades pedagógicas, o professor e todos os demais recursos utilizados para a educação como prática social são meios para que o real fim da educação possa acontecer: o educando possa constituir-se como um homem histórico.
Qual a missão das universidades frente à finalidade geral da educação de produzir o homem histórico?
As universidades são instituições de educação que atuam no mais alto nível da escolarização formal. Elas são instituições complexas que em sua concepção moderna integram a formação superior científica e profissional, a ciência, o domínio e o cultivo do saber humano, a aplicação de sua produção acadêmica e científica em projetos da sociedade, a assistência, a criação e administração de museus, teatros, hospitais, laboratórios, enfim um conjunto amplo de atividades e de frentes de atuação que mobilizam um grande e diversificado conjunto de condições materiais, de pessoal e técnicas para que possam ocorrer.
Em 1930, Abraham Flexner elaborou sua definição da universidade moderna reconhecendo que essa instituição foi histórica e socialmente construída e que, portanto, nos diferentes tempos e lugares a definição do que seria uma universidade relevante apresenta características singulares. As concepções de universidade e de sua missão nas formulações inglesa de John Henry Newman, alemã de Wilhelm von Humboldt ou estadunidense do próprio Flexner, ou de Alfred North Whitehead, variam em função das diferenças entre a Inglaterra de meados do século XIX, a Prússia do início daquele mesmo século e os Estados Unidos do final do XIX e início do século XX. Enquanto a ideia de universidade moderna inglesa privilegiou a formação geral dos estudantes e o cultivo da erudição, a universidade alemã incorporou a ciência moderna à formação dos estudantes e à produção de conhecimento e a universidade estadunidense definiu-se como promotora do desenvolvimento através da solução de problemas.
As concepções de Newman, de Humboldt e de Flexner são ideais. Nas universidades reais as concepções inglesa, alemã e estadunidense, além de outras, como a francesa ou a soviética, convivem sob uma complexidade crescente, ou como escreveu Clark Kerr:
Uma universidade, pouco importando onde ela se localize, não pode aspirar a ser mais do que tão britânica quanto possível, pelo bem de seus alunos de graduação; tão alemã quanto possível, pelo bem de seus alunos de pós-graduação e do pessoal de pesquisa; tão americana quanto possível, pelo bem do público em geral – e tão confusa quanto possível, pelo bem da preservação do incômodo equilíbrio social.
O trecho acima foi retirado do livro Os usos da universidade[2]. Escrito como resultado de três conferências proferidas por Clark Kerr na Universidade Harvard, em 1963[3], o livro apresenta uma análise feita pelo então presidente da Universidade da Califórnia sobre o desenvolvimento das grandes universidades de pesquisa nos Estados Unidos [para saber mais sobre esse importante pensador da educação superior, clique aqui]. Nele, Kerr defendeu que cada uma das grandes universidades estadunidenses não constituiu um corpo único, consistente, detentor de uma unidade em torno de uma missão bem definida, mas um conjunto de comunidades e atividades interligadas, com interesses, óticas e funções distintas, agrupadas em torno de uma administração central comum. A isso o autor chamou de multiversidade.
Para Kerr, o ponto de virada da universidade estadunidense no sentido da multiversidade aconteceu na segunda metade do século XIX, por meio de dois processos distintos: a criação da Universidade Johns Hopkins, centrada na pós-graduação e com ênfase na pesquisa; e a promulgação da Lei Morrill, com a doação de terras para as universidades, o que estimulou a criação de escolas de agricultura e engenharia e a maior interação com os setores produtivos de uma sociedade em plena industrialização. A Universidade Johns Hopkins foi inspirada no modelo de universidade de pesquisa alemã e disseminou esse formato por instituições como Harvard na gestão de Charles Elliott, Cornell na gestão de Andrew White, Michigan com James Angell, Columbia com Frederick Barnard, além de Minnesotta, Stanford, Chicago, Wisconsin, Yale, Princeton e Califórnia. Esse modelo de universidade de pesquisa da Hopkins foi amplamente utilizado pelas universidades públicas estadunidenses em expansão no final do século XIX.
No início do século XX, quando as características introduzidas pela influência da universidade de pesquisa e pelos subsídios criados pela Lei Morrill estavam disseminadas, Kerr descreve o que, para ele, seria uma contrarrevolução na constituição da universidade moderna estadunidense. Para o autor, a gestão de Lawrence Lowell à frente da Universidade Harvard recolocou no centro de destaque as atividades de graduação, com ênfase na concentração de trabalhos escolares e o retorno a programas de formação geral. A experiência de Harvard é exemplar do modo de desenvolvimento da universidade moderna estadunidense.
A diversificação das frentes de atuação e seu desenvolvimento pleno, possível a partir da ampliação dos recursos externos para parte das atividades, especificamente àquelas que mais diretamente respondiam aos anseios dos setores que as financiavam, permitiu que as grandes universidades estadunidenses concentrassem em seu interior diferentes funções, para diferentes públicos, sendo, nas palavras de Clark Kerr, “tantas coisas, para tantas pessoas diversas que não pode deixar de estar parcialmente em conflito consigo mesma”. O autor atribui ao reitor da multiversidade um papel crucial na mediação dos diferentes interesses e no incentivo ao desenvolvimento das múltiplas funções concorrentes no interior da instituição.
As conferências de 1963 em Harvard não foram o primeiro momento em que Kerr externou sua posição sobre a educação superior estadunidense. A análise sobre o desenvolvimento da educação superior dos Estados Unidos e a ideia de multiversidade, mesmo que sem essa denominação, já estavam na formulação do Plano Diretor da Califórnia para a Educação Superior de 1960, que definiu o modelo de expansão das matrículas na educação superior nos Estados Unidos e exerceu enorme influência no processo de expansão da educação superior em todo mundo.
A expansão das matrículas na educação superior e as restrições à expansão de universidades públicas de pesquisa
As matrículas na educação superior, em nível global, tiveram um enorme crescimento durante o século XX. Dados do Cross-national Time-series Data Archive e do Unesco Institute for Statistics mostram que o número de matriculados em todo o mundo cresceu cerca de 200 vezes no período, passando de aproximadamente 500 mil matriculados em 1900 para aproximadamente 100 milhões de matriculados em 2000. O que os dados também mostram é a intensificação do crescimento de matrículas na segunda metade do século, especialmente nas décadas de 1960 e 1990. A figura 1, extraída do estudo de Schofer e Meyer[4], ilustra bem esse crescimento.
Fonte: Schofer; Meyer (2005, p.899)
O período de intensificação do crescimento das matrículas na educação superior coincidiu com a difusão em nível mundial do que Simon Marginson[5] chamou de ideia californiana de Clark Kerr para a educação superior. Essa concepção de universidade, da educação superior, da função pública das instituições educacionais e da organização desses elementos, gestada e implantada a partir de 1960 na Califórnia, buscou, segundo o seu plano diretor, “equilibrar a existência de instituições de excelência com o acesso e a igualdade de oportunidades a serviço do Estado, da sociedade e da economia, através de uma divisão gerida do trabalho entre instituições distintas umas das outras, com missões abrangentes dentro de seus próprios quadros”. Essa tentativa também foi, segundo Marginson, uma forma que Clark Kerr buscou de garantir que a Universidade da Califórnia protegesse o seu quase monopólio da pesquisa frente às pressões pela ampliação do acesso e expansão da educação superior. Segundo o próprio Kerr, em seu livro de memórias sobre a Universidade da Califórnia[6]:
O que precisávamos eram três modelos melhorados – o modelo de acesso aberto, o modelo politécnico e o modelo de universidade de pesquisa. Se as faculdades estaduais “fossem para a universidade”, algumas novas faculdades teriam de ser fundadas para atender ao papel da politécnica.
A ideia californiana de Clark Kerr para a educação superior serviu à estruturação, nos Estados Unidos e no mundo, de sistemas organizados de forma verticalizada, estratificada e hierarquizada por diferentes instituições, de modo a preservar uma pequena elite de instituições de pesquisa e pós-graduação no topo da estrutura e instituições de ensino na base que pudessem responder às necessidades de massificação. Foi a saída encontrada para responder à necessidade de treinamento e inclusão educacional em nível superior sem comprometer a seletividade e o papel dessas instituições na distribuição de empregos, de posições e de status sociais. Mesmo nos países com as maiores taxas de matrícula na educação superior, o número de estudantes que acessam universidades de pesquisa de elite é muito baixo.
No Brasil, em que a história da educação superior, em seu próprio território, iniciou com faculdades profissionais isoladas e onde somente no segundo quartil do século XX os primeiros projetos de universidades abrangentes começaram a ser implantados, a diferenciação que protege as instituições de pesquisa não foi estruturada por um plano diretor como o da Califórnia, mas na distinção entre a oferta pública e privada de educação superior. Essa separação permitiu a expansão acelerada da rede privada, quase em sua totalidade formada por instituições não universitárias e faculdades isoladas, e do controle das condições de pesquisa das instituições públicas, quase em sua totalidade formada por universidades. Esse quadro ganhou muita complexidade nos anos finais do século XX e início do século XXI com o estrangulamento da capacidade de ampliação da rede privada, que já tinha alcançado 3/4 das matrículas no ensino de graduação, e o aumento das pressões para a expansão das instituições públicas. Apesar das muitas dificuldades, das forças contrárias e dos recursos modestos, a educação superior pública universitária conseguiu ter uma considerável expansão, mantendo as características de pesquisa das universidades e incluindo parcelas da população historicamente excluídas.
É nesse cenário que ganham corpo, no debate sobre a educação superior nacional, as propostas de diversificação da oferta e das instituições de ensino como forma de acelerar o aumento das taxas de matrículas, não raramente referenciando o sistema da Califórnia como um exemplo de sucesso no equilíbrio entre excelência e inclusão. A expansão da educação superior pública, realizada no Brasil nos últimos anos, teve um importante papel na ampliação do acesso às universidades e à pós-graduação e não deve sofrer retrocessos. Qualquer política que tenha como objetivo expandir a educação superior não deve perder de vista a finalidade da educação de permitir que os educandos possam acessar as condições necessárias para a sua construção como ser humano histórico. A universidade necessária não é a que oferece ensino, ou a que faz pesquisa ou que se relaciona com a sociedade, mas a que fornece as condições para que os estudantes possam apropriar-se da cultura humana em seu mais elevado nível e integralmente. Ela, portanto, não pode ser fragmentada e a soma das múltiplas atividades da multiversidade é sempre menor do que a unidade da universidade. A universidade que atende a sua missão pública é mais do que um estacionamento comum ou um sistema de condicionamento central de ar, mas o espaço adequado para o desenvolvimento humano.
Flávio Batista Ferreira é bacharel e licenciado em história (2005) e mestre em educação (2013) pela Unicamp e doutor em educação (2018) pela USP. É assistente técnico na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp e desenvolve pesquisa no Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas, História e Avaliação da Educação Superior da USP. Tem interesse pelas áreas de administração escolar, política educacional, organização e funcionamento dos sistemas e das instituições de ensino no Brasil.
[1] Ver: Saviani, D.. “Natureza e especificidade da educação”. Revista em Aberto, Brasília, a. 3, n. 22, p. 01-06, jul./ago. 1984 e Paro, V. H.. “A natureza do trabalho pedagógico”. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 103-109, jan./jun. 1993.
[2] Kerr, Clark. The uses of the university. Harvard University Press, 2001.
[3] É possível ouvir na voz de Clark Kerr.
[4] Schofer, E.; Meyer, J. W. “The worldwide expansion of higher education in the twentieth century”. American Sociological Review, v. 70, n. 6, p. 898-920, 2005.
[5] Marginson, S.. The dream is over: the crisis of Clark Kerr’s California idea of higher education. California: University of California Press, 2016.
[6] Kerr, C.. The gold and the blue: A personal memoir of the University of California, 1949-1967. Vol. 1: Academic triumphs. California: University of California Press, 2001.