Escravidão contemporânea atinge milhões e pode ser combatida com auxílio da tecnologia

Por Luanne Caires e Leonardo Fernandes

Drones, aplicativos de celular e blockchain têm ganhado cada vez mais espaço na luta contra condições degradantes de trabalho, facilitando processos de fiscalização e denúncia.

Estima-se que 40,3 milhões de pessoas no mundo foram submetidas ao trabalho análogo à escravidão em 2016, segundo o relatório Índice Global de Escravidão publicado pela ONG Walk Free em julho passado. No Brasil, são 369 mil vítimas – uma média de quase dois escravos a cada mil habitantes – ocupando o 20º lugar no ranking mundial.

Dados do Ministério do Trabalho (MTE) mostram que, desde 1995, mais de 53 mil trabalhadores foram libertados da condição degradante no país. Essas informações, coletadas pelo MTE ao longo de mais de 20 anos de fiscalização, foram compiladas no Radar do Trabalho Escravo, revelando que dos 15 municípios com mais autos de infração lavrados, dez deles estão na região amazônica, todos no estado do Pará. Já as atividades econômicas que mais exploram esse tipo de mão de obra estão relacionadas ao agronegócio, como a criação de gado e os cultivos de soja, de cana-de-açúcar e de café, por exemplo.

A partir do estudo do projeto Escravo Nem Pensar, é possível ter uma noção melhor do perfil dessa escravidão moderna.  A maioria são homens, quase 95% dos resgatados, com idade entre 18 e 44 anos (83%), com pouca escolaridade (37% frequentaram até a 5ª série) ou analfabetos (30%), e migrantes – oriundos de estados como o Maranhão (23%), Pará (10%) e Bahia (9%).

Mas, afinal de contas, o que é a escravidão moderna? A principal lei que rege o assunto no Brasil é o artigo 149 do Código Penal de 1940, que afirma que é crime “reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. As expressões “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho” foram introduzidas pela Lei Federal nº 10.803/2003, que modernizou a repressão à escravidão contemporânea no Brasil.

A lei determina uma pena de reclusão de dois a oito anos e multa para quem explora os trabalhadores dessa maneira. Mas a demora na tramitação dos processos e as inúmeras possibilidades de recurso faz com que sejam arquivados ou prescrevam. Um caso notório é o da fazenda Brasil Verde, localizada em Sapucaia, no sudeste do Pará, onde 128 trabalhadores rurais foram submetidos ao trabalho escravo no ano 2000. O processo judicial que tratava do caso desapareceu e os responsáveis, o Grupo Irmãos Quagliato, nunca foram punidos. Em março de 2016, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Brasil pelos fatos que ocorreram na fazenda. Foi a primeira vez que a Corte condenou um país por trabalho escravo.

Na avaliação da historiadora Zilda Marcia Gricoli Iokoi, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), até a mínima proteção que a atual lei garante pode ser perdida com a reforma trabalhista aprovada no ano passado. “A reforma só resultou na precarização das relações de trabalho. Nós estamos num momento de hiper exploração, de tirar todos os avanços sociais. Correndo o risco de normalizar a escravidão”, define uma das fundadoras do Diversitas, Núcleo de Estudo Contra a Intolerância.

Apesar da impunidade, os infratores estão sentindo no bolso. Foi revelada em outubro uma versão atualizada da chamada “lista suja” do trabalho escravo, que denuncia 209 empresas pela prática do crime. A lista é compilada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Além da divulgação da lista suja, outras ferramentas têm sido fundamentais na prevenção e combate à escravidão contemporânea. E muitas delas decorrem dos avanços tecnológicos e das mudanças do papel da tecnologia nas relações sociais.

Perfil do trabalhador submetido à escravidão contemporânea no Brasil. Fonte: Escravo, Nem pensar! (ONG Repórter Brasil).

Tecnologia como aliada

Do sensoriamento remoto ao controle na tela do celular, o uso da tecnologia tem assumido cada vez mais protagonismo no combate à escravidão. Antigamente, monitorar áreas e atividades com potencial utilização de trabalho análogo ao escravo exigia longos períodos de tempo e equipes numerosas. A fiscalização era quase sempre restrita a visitas em campo, feitas por pessoal treinado e especializado. Hoje, é possível identificar locais que necessitam de visitas a partir de dados disponíveis gratuitamente ou contar com a denúncia e controle coletivos.

Um exemplo é o uso de dados de satélites disponíveis gratuitamente. Em seu artigo recente, “Escravidão a partir do espaço“, um grupo de pesquisadores da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, utilizou dados do Google Earth® para estimar o número de fornos de cerâmica ao longo do cinturão de produção de tijolos no sul da Ásia. O cinturão é uma região não oficial que engloba o Paquistão, nordeste da Índia, Bangladesh e Nepal. Nela, os fornos de cerâmica são pontos conhecidos por usualmente empregarem condições degradantes de trabalho, incluindo trabalho infantil e servidão por dívida.

No artigo, os pesquisadores utilizaram as imagens de sensoriamento remoto para identificar fornos de cerâmica, que têm um formato característico e são facilmente visíveis em imagens de satélite coloridas e em alta resolução. A identificação dos fornos feita por um sistema de interpretação visual de imagens foi posteriormente validada por análises complementares de voluntários participantes da pesquisa e de especialistas em sensoriamento remoto, de modo a verificar a congruência de análises independentes. Como resultado, os pesquisadores estimaram que existem mais de 55 mil fornos de cerâmica no cinturão de tijolos.

O próximo passo é disponibilizar um mapa com a localização explícita dos fornos, que subsidiará visitas a campo feitas por instituições públicas e organizações não governamentais de combate ao trabalho escravo. “Somente trabalhando em conjunto com essas organizações, as estimativas obtidas por nós podem de fato ser usadas para calcular o número de escravos trabalhando na indústria de tijolos”, afirmam os autores do artigo. No Brasil, a técnica pode ser utilizada para localizar campos de carvão, lavouras de cana-de-açúcar e outras áreas em que ocorrências de escravidão contemporânea ainda são comuns. Além das imagens de satélite, o Ministério do Trabalho e Emprego anunciou desde 2015 o uso de drones para combater o trabalho análogo à escravidão no meio rural.

Dados desse tipo permitem o desenvolvimento de planos de ação e políticas baseados em evidências atualizadas, poupando tempo e recursos. E a aplicação dos dados não se restringe à área de direitos do trabalho. Segundo os autores, “estimativas como essa podem não apenas calcular a escala do problema da escravidão no cinturão de tijolos, mas também os impactos além das pessoas escravizadas, como, por exemplo, mudanças ambientais e impactos nos serviços ecossistêmicos, relacionando-se com outros objetivos do desenvolvimento sustentável”.

Imagem de sensoriamento remoto com dois fornos de cerâmica em destaque. Ao lado dos fornos, há campos de argila usados na fabricação dos tijolos. Reprodução do artigo original (Boyd e colaboradores 2018, Journal of Photogrammetry and Remote Sensing)

Aplicativos na palma da mão

No trabalho da Universidade de Nottingham, a participação de voluntários na validação dos dados foi fundamental. Mas, além da participação direta em pesquisas, iniciativas de participação e informação cidadã têm crescido como prática cotidiana por meio dos aplicativos de celular. Causas como o combate ao trabalho escravo atraem a participação e interesse popular por serem consideradas nobres, servindo a um propósito público. Além disso, a facilidade de execução das tarefas também é um atrativo, já que a participação cidadã geralmente envolve coleta ou fornecimento de dados simples por pessoas físicas ou empresas. As informações passam então a compor grandes bancos de dados de vigilância e monitoramento.

No Brasil, um exemplo é o aplicativo gratuito Moda Livre, desenvolvido pela organização não governamental Repórter Brasil em 2016. O aplicativo avalia as ações que marcas de vestuário praticam para garantir o cumprimento da legislação trabalhista no processo de fabricação de suas peças. Além disso, também monitora empresas sabidamente envolvidas em casos de escravidão contemporânea no passado. A avaliação é feita a partir de um questionário enviado às empresas, que aborda quatro tipos de indicadores: políticas de combate ao trabalho escravo, fiscalização de fornecedores, transparência das ações e histórico. Além da pontuação de 101 marcas avaliadas, o Moda Livre apresenta ao consumidor notícias sobre trabalho escravo na indústria têxtil. Segundo Natália Suzuki, uma das coordenadoras na equipe da Repórter Brasil, o Moda Livre cumpre um papel importante de diálogo com o consumidor que quer se informar sobre o trabalho escravo e fazer escolhas de consumo de forma mais crítica. Mas o processo de levantamento do conteúdo tem suas dificuldades. “Um aspecto dificultoso é fazer a atualização constante. São muitas lojas, muitas marcas e as informações precisam ser sempre atualizadas. A cada período tem uma inserção nova. Mas isso é natural e o aplicativo, coordenado pelo Carlos Juliano Barros, cumpre o objetivo de transparência”, afirma Suzuki.

A Repórter Brasil também acredita no uso da tecnologia como ferramenta educativa no combate ao trabalho escravo. Em 2016, a ONG lançou o aplicativo ENP! (Escravo, Nem Pensar!), voltado para educadores e profissionais interessados em desenvolver atividades pedagógicas sobre o tema. “Começamos a perceber que havia uma cobertura muito grande de internet, redes sociais e aplicativos em lugares que as pessoas achavam que não se fazia uso dessas tecnologias. E a verdade é que nos últimos anos a cobertura digital melhorou muito em lugares onde até pouco tempo a internet era muito ruim, como o interior do Pará, norte do Maranhão, norte do Tocantins, lugares onde a gente tradicionalmente trabalha ou trabalhava. Os aplicativos são, então, uma inserção interessante, sempre complementando, claro, o trabalho presencial”, diz Suzuki. Hoje o ENP! encontra-se desativado, pois as atualizações no site do Escravo, Nem Pensar! possibilitam o acesso fácil ao material no próprio site.

Da perspectiva dos trabalhadores, a iniciativa Vozes do Trabalho disponibiliza um sistema no qual trabalhadores denunciam abusos de forma simples e anônima e a empresa repassa essas informações para fornecedores preocupados em melhorar suas práticas trabalhistas. A iniciativa já atende mais de 400 empresas e 40 mil trabalhadores. No Brasil, projeto semelhante é o Pardal, desenvolvido pelo Ministério Público do Trabalho para facilitar denúncias de violações graves de direitos trabalhistas que tenham repercussão coletiva e social. As denúncias são analisadas e, caso atendam aos requisitos, é aberta uma investigação na unidade do Ministério Público do Trabalho que atende o local de ocorrência dos fatos. A tecnologia ajuda também no controle da veracidade das informações. O município de origem da denúncia e a identificação do aparelho remetente são registrados de forma a identificar o responsável por denúncias inverídicas, que podem ser punidas na forma da lei. “Antigamente se dizia que o trabalhador não acessaria isso, que o trabalhador não tem celular. E hoje o que a gente vê é que o trabalhador, mesmo em situação de trabalho escravo, pode ter um celular. Um celular que pode ser mais simples, mas tem. E é uma estratégia muito importante investir em desenvolvimento e pensar em tecnologias que possam agregar outras medidas já desenvolvidas de combate ao trabalho escravo”, complementa Suzuki.

Aplicativos que auxiliam no combate ao trabalho escravo. Moda Livre, desenvolvido pela ONG Repórter Brasil, e Pardal, desenvolvido pelo Ministério Público do Trabalho.

Sistemas de monitoramento como o Moda Livre e o Vozes do Trabalho complementam uma prática vigente no mercado há bastante tempo: a auditoria de saúde e segurança do trabalho. As auditorias são realizadas por especialistas com conhecimento técnico, que não apenas visitam as empresas para avaliar se as condições de trabalho estão de acordo com a legislação e boas práticas trabalhistas, como também conferem declarações prestadas pelas próprias empresas. Essa ferramenta é importante porque é um dos passos que permite às empresas obterem certificação e reconhecimento por boas práticas, além de auto avaliarem-se e elaborarem planos de adequação quando necessário. Para o biólogo e analista de sustentabilidade Lucas Teixeira, um dos benefícios derivados da auditoria é que empresas grandes, com muitos funcionários ou longas cadeias de fornecedores, podem controlar melhor as atividades de sua produção. “As auditorias permitem detectar riscos e situações inadequadas aos quais os trabalhadores estão submetidos, ajudando a conduzir práticas que garantam melhores condições para os profissionais. Isso melhora a imagem da empresa não só para investidores e consumidores, mas também para os próprios funcionários, que passam a ter mais segurança em seu ambiente de trabalho e maior produtividade”, afirma Teixeira.

Blockchain e bancos de dados

Outra tecnologia que têm crescido no combate à escravidão contemporânea é a blockchain, adotada recentemente pela Coca-Cola em parceria com o Departamento de Estado dos Estados Unidos e duas outras companhias. A blockchain é uma tecnologia de registro distribuído, que usa a descentralização e a conexão entre blocos como medida de segurança. A rede funciona como um conjunto de blocos encadeados que armazenam um conteúdo e uma “impressão digital” típica de cada bloco. Assim, cada novo bloco da cadeia contém seu conteúdo próprio, mas também a impressão digital do bloco anterior. Ao juntar essas duas informações, o bloco gera uma nova impressão digital própria, aumentando a segurança de dados compartilhados.

No caso da Coca-Cola, a tecnologia será utilizada como registro seguro referente a informações de combate ao trabalho escravo. Segundo relatório da organização humanitária Know the Chain, os esforços da maioria das empresas de alimentos e bebidas no combate a condições de trabalho degradante estão abaixo do adequado, mas a Coca-Cola já se comprometeu a realizar, até 2020, estudos sobre as condições de trabalho em suas cadeias de suprimento de açúcar.

Trabalhador em campo de cana-de-açúcar, onde muitas vezes as condições de trabalho são degradantes. Foto: Daniela Penha. Reproduzida de Repórter Brasil.

O papel do registro tem uma importância não só para o combate da escravidão em andamento, mas para o acesso ao histórico das relações de trabalho. Pensando nisso, o Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult/Unicamp) utilizou o avanço nas tecnologias de bancos de dados e lançou o Acervo MPT15, banco digital que reúne mais de 20 mil documentos sobre investigações trabalhistas no âmbito do Ministério Público do Trabalho da 15ª região, que inclui 599 municípios do estado de São Paulo. O site é fruto de uma parceria com o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/Unicamp) e a Fapesp.

Ao aumentar a transparência sobre casos que investigam violação a direitos trabalhistas, as tecnologias de armazenamento digital de dados ampliam as possibilidades de pesquisa, representando mais uma ferramenta relevante na luta por melhores condições de trabalho. Além disso, ajudam a evitar casos de perda de arquivos, como o da Fazenda Brasil Verde. “Esse material tem interesse para várias áreas que estudam as relações trabalhistas no Brasil nas últimas décadas. Mas ele não se presta apenas para estudos acadêmicos. É evidente que uma avaliação da atuação das instituições responsáveis pela fiscalização das relações de trabalho no Brasil permite detectar pontos mais fracos que precisam ser melhorados, procedimentos que precisam ser mais eficientes – e, por que não, achar pontos positivos que possam ser incrementados”, explica Silvia Lara, professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Cecult.

Luanne Caires é bióloga e mestre em ecologia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente faz especialização em jornalismo científico no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp) e integra o programa Mídia Ciência (Fapesp).

Leonardo Fernandes é jornalista (UFPA) e aluno do curso de especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.