Por Janaína Quitério
Escrever contos e romances sobre criaturas moldadas em laboratório ou puramente eletrônicas é se relacionar com o outro. Com o estranho estrangeiro que nasceu de nós mesmos, mas apresenta outra subjetividade. Isso nos obriga a sair da rotina e pensar formas desconhecidas de interação política e comunicação afetiva.
Luiz Bras é um dos “alter egos” do escritor brasileiro Nelson de Oliveira, que se dedica à escrita de diferentes gêneros literários, com destaque (no caso de Luiz Bras) para a ficção científica. Com esse pseudônimo, publicou Distrito Federal (2014, editora Patuá), Sozinho no deserto extremo (2012, editora Prumo) e Pequena coleção de grandes horrores (2012, editora Circuito), entre outros. Nesta entrevista, o escritor fala sobre seu interesse pela ficção científica e sobre a interface entre imaginação futurista e realismo científico, que, na contemporaneidade, tem remodelado o próprio gênero.
A rapsódia Distrito Federal inspira-se tanto na tecnologia como na mitologia brasileira para revelar um cenário que, para nós, brasileiros, é (infelizmente) bem real. Fale um pouco desse livro.
Distrito Federal apresenta muitos enredos paralelos, mas o principal é a corrupção moral na política brasileira. É uma narrativa em que a alta tecnologia encontra o sobrenatural, reforçando a famosa premissa de Arthur C. Clarke: “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. Os dois personagens centrais − um ciborgue possuído por um espírito maligno e uma inteligência artificial sofisticadíssima − desvelam ao leitor uma realidade social perversa, pós-humana, em que a luta de classes ocorre agora também no plano evolutivo. No começo deste século, Francis Fukuyama alertou: “Se casais endinheirados, através da engenharia genética, tiverem a oportunidade de aumentar a inteligência de seus filhos, assim como a de todos os seus descendentes, teremos não apenas um dilema moral mas uma guerra total de classes”. Em minha rapsódia futurista, essa guerra genética já está em franca expansão.
Quero aproveitar essa narrativa para saber quais seriam, em sua opinião, as principais potências da ficção científica literária na problematização – e na criação – de mundos. Fale um pouco sobre os outros livros de sua autoria.
Os muitos ramos da ficção científica − distopia, cibernética, viagem no tempo, engenharia genética, história alternativa, civilização alienígena etc. − falam todos do futuro presente. Ou seja, extrapolam num futuro imaginário as crenças, os medos e os desejos do presente. No romance Sozinho no deserto extremo, em que a humanidade inteira desapareceu, sobrando apenas um indivíduo, eu trato especificamente da solidão existencial. Na novela Não chore, também lançada pela editora Patuá, em 2016, o tema é o grotesco sistema penal brasileiro, com suas prisões mentais. Nessa narrativa há até um reality show muito popular, chamado “Olho por olho, dente por dente”, em que um preso é torturado até a morte, em rede nacional. Percebe? Igual à maioria dos escritores de ficção científica, eu simplesmente pego uma situação contemporânea − corrupção na política, violência urbana, ausência do Estado etc. − e injeto altas doses de tecnologia.
No debate realizado pelo Café Filosófico, do Instituto CPFL, em 2016, você trouxe a questão da ficção futurista e do realismo científico, que permeia a literatura da ficção científica. Se, em tempos passados, muitas tecnologias eram consideradas “especulações”, hoje já são realidade. É o caso da inteligência artificial, da fusão homem-máquina e de outras conquistas da tecnociência e da bioengenharia. Como isso pode remodelar a própria literatura de ficção científica?
Imaginação e realidade estão competindo ferozmente. Nas revistas científicas tipo Nature e Scientific American, leio que a equipe do bilionário russo Dmitry Itskov está pesquisando o upload mental. Outro bilionário russo, Yuri Milner, quer despachar uma frota de nano-sondas robóticas para o sistema de Alfa Centauro. Paraplégicos conectados a exoesqueletos já deixaram de ser novidade há tempo. Órgãos vitais são cultivados em laboratório, a partir de células-tronco, e cartilagens, ossos e músculos são esculpidos em impressoras 3D. A equipe de Elon Musk, um empreendedor sul-africano, está trabalhando na primeira missão humana a Marte. Duzentos anos atrás não existia a luz elétrica, o telégrafo, a anestesia, o antibiótico… Hoje, abro o jornal e vejo que o automóvel totalmente informatizado, sem motorista, já está sendo desenvolvido. Enfim, o que antes era apenas ficção começou a se tornar realidade. Então, o desafio da literatura é não ficar para trás. É conseguir refletir sobre o futuro do hoje, deste hoje que já se tornou o futuro do ontem.
Muitos laboratórios de pesquisa de ponta estão investindo no desenvolvimento de inteligências artificiais maiores e melhores que a inteligência humana. Junto com grandes corporações, alocadas, sobretudo, no Vale do Silício (Califórnia), esses pesquisadores têm o objetivo de alterar de tal maneira o corpo físico dos humanos que sua condição humana poderia ser superada. A isso cientistas sociais já dão o nome de trans-humanismo, pós-humanismo e singularidade. Apesar de estarmos falando de ciência, o “pós-humano” já foi delineado na ficção científica. Você poderia dar exemplos?
O trans-humanismo e as inteligências artificiais são muito antigos na ficção científica. O primeiro romance de ficção científica − Frankenstein ou o moderno Prometeu, de Mary Shelley, lançado em 1818 − já trata de uma experiência científica capaz de injetar vida num corpo morto. Um século depois, em 1921, o checo Karel Capek escreveu a peça R.U.R. − robôs universais rossum, dando início ao tsunami de histórias sobre robôs e androides. Essas duas linhas de pesquisa − trans-humanismo e IAs − estão presentes em centenas de autores, dos clássicos Isaac Asimov e Philip K. Dick aos contemporâneos William Gibson e China Mieville. Escrever contos e romances sobre criaturas moldadas em laboratório ou puramente eletrônicas é se relacionar com o outro. Com o estranho estrangeiro que nasceu de nós mesmos, mas apresenta outra subjetividade. Isso nos obriga a sair da rotina naturalista, muito chauvinista, e pensar formas desconhecidas de interação política e comunicação afetiva.
Pelo menos para a ciência dita “hard”, o desejo de se diferenciar da ficção sempre foi fundamental. Mas alguns cientistas da área das ciências humanas − da antropologia, por exemplo −, como a norte-americana Donna Haraway, inspiram-se na ficção científica para criar conceitos que sejam capazes de explicar as novas relações humanas. Em fins de 1980, por exemplo, Haraway publicou o Manifesto ciborgue, para problematizar tanto a tecnologia quanto as questões de sexualidade e gênero. Mais recentemente, ela pegou o personagem de ficção científica de horror criado pelo escritor americano H. P. Lovercraft em 1920, o monstruoso Cthulhu, para criar o “Cthulhuceno”, a fim de refletir sobre o neologismo “Antropoceno” e as propostas de pensar a nova nomeação de Eras tendo em vista as mudanças climáticas. Parece que essa dicotomia (ficção X ciência) não é tanto uma questão crucial para a ficção científica, ou é?
O provocativo Manifesto ciborgue, publicado na época em que o cyberpunk bombava, é uma obra inaugural, um clássico da reflexão sobre gênero, sexualidade, marxismo e tecnologia. Nesse livro a autora avisa, entre outras coisas, que “o ciborgue é nossa ontologia, ele determina nossa política”, “os dispositivos microeletrônicos arremedam a ubiquidade da divindade, estão em toda a parte e são invisíveis”, “o ensino do moderno criacionismo cristão deve ser combatido como uma forma de abuso sexual contra as crianças”, “a microeletrônica é a base técnica dos simulacros, isto é, de cópias sem originais”… É certo que nosso tempo precisa de novos mitos, mas de mitos não dualistas, que incluam e equilibrem as mais diferentes polaridades. Nossa cultura tropical, colorida pelas tradições indígenas e africanas, tem muito a oferecer. Eu procuraria os novos mitos no xamanismo e no candomblé. Na moderna ficção científica, cheia de paraísos líquidos, a profana conexão cérebro-computador, por exemplo, dialoga intimamente com a metáfora da possessão sagrada. Longe da tradição anglófona, Tupã e Olorum renderiam mitos muitos mais benfazejos.
Se pudéssemos fazer um paralelo entre as questões temáticas tratadas nos anos 1950 e 1960 (período chamado de “época de ouro” da literatura de ficção científica) e na época atual, quais são as principais diferenças, em sua opinião?
As questões são praticamente as mesmas: crise ecológica, manipulação genética, informatização do cotidiano, expansão da consciência, realidade virtual, busca da imortalidade, ditaduras religiosas, Estados totalitários, expedição a outros planetas, civilizações alienígenas etc. A diferença está não só na abrangência dessas questões, que extrapolaram o espaço da mera ficção e invadiram a realidade empírica, mas também no aumento do número de vozes dissonantes. Hoje o número de autores sul-americanos, africanos e asiáticos talentosos é bem maior. Também aumentou o número de escritoras e ficcionistas LGBT. Agora já podemos falar até de um cânone da ficção científica brasileira, com obras e autores de várias gerações. Apesar do preconceito reinante, devagar o gênero futurista vai deixando de ser totalmente invisível, na Terra Brasilis.
Está previsto para o próximo semestre o lançamento de uma coletânea de contos de ficção científica brasileira organizada por você. Fale sobre esse projeto e sobre os principais desafios do gênero no Brasil.
Diferentemente da nossa ficção policial, cujo maior nome ainda é o Rubem Fonseca, a nossa ficção sobrenatural e a nossa ficção científica ainda não conquistaram a aprovação da crítica especializada. O preconceito continua grande, na imprensa e na academia. Continuamos meio invisíveis para as instâncias legitimadoras… O romance O doutor Benignus, do português naturalizado brasileiro Augusto Emílio Zaluar, publicado em 1875, é considerado a primeira obra de ficção científica escrita no Brasil. Muitos autores do mainstream literário − Machado de Assis, Lima Barreto e Guimarães Rosa, entre outros − escreveram esporadicamente ficção científica, mas o primeiro escritor a se especializar no gênero foi Jeronymo Monteiro. Esses foram os precursores. A partir desse ponto os especialistas dividem as obras e os autores em gerações, ou ondas. A primeira onda espalhou-se nos anos 1960, 1970 e 1980 cheap fake watches, e foi impulsionada pelo editor Gumercindo Rocha Dorea. Dela fizeram parte André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha e Rubens Teixeira Scavone, entre outros. A segunda onda começou no final dos anos 1980 e avançou até o início deste século, revelando ao menos uma dúzia de nomes fortes, que estão na ativa até hoje: Carlos Orsi, Lucio Manfredi, Fabio Fernandes, Ataíde Tartari, Finisia Fideli, Gerson Lodi-Ribeiro, Jorge Luiz Calife, Roberto de Sousa Causo, Ivan Carlos Regina, Octavio Aragão, Guilherme Kujawski e Fausto Fawcett, entre outros. Tecnicamente, eu pertenço à terceira onda, ao lado de Cristina Lasaitis, Ana Cristina Rodrigues, Lady Sybylla, Cirilo Lemos, Alliah, Santiago Santos, Márcia Olivieri, Tibor Moricz e outros. A antologia Fractais tropicais, que será lançada em breve pela Sesi-SP Editora, reúne trinta dos melhores contos da ficção científica brasuca, das três ondas. Minha antologia somará forças com as organizadas por Roberto de Sousa Causo e Braulio Tavares, em mais uma tentativa de levar nossa produção para fora da restrita bolha de fãs. Antes de partir desta para outras dimensões, gostaria muito de assistir à ficção científica brasileira ganhando Jabutis, Oceanos, APCAs, ABLs, Prêmios São Paulo…
Tenho a impressão de que a clássica literatura de ficção científica, criada por autores homens, estava alocada apenas nos Estados Unidos e no Reino Unido. Essa realidade está mudando, não é? Hoje, quem escreve literatura de ficção científica no mundo?
É verdade. Para cada Stanislaw Lem e para cada Ievguêni Zamiátin é possível citar vinte autores anglófonos. Os Estados Unidos e o Reino Unido, protagonistas na “época de ouro”, ainda são os grandes produtores e consumidores de ficção científica. Mas as coisas estão realmente mudando. Em toda a parte, a hegemonia masculina branca começa a ser ameaçada. E os países da Ásia e da África estão combatendo vigorosamente o eurocentrismo típico do gênero.
Você organizou também uma coletânea de poemas sobre o pós-humanismo, intitulada Hiperconexões: realidade expandida, que saiu este ano pela editora Patuá. Isso significa que a ficção científica não acontece apenas na prosa? A poesia também tem muito a dizer sobre o futuro?
Um dos poemas mais importantes da língua portuguesa, o inquietante “A máquina do mundo”, de Drummond, fala de uma onisciente entidade alienígena que se manifesta a um andarilho desinteressante e desinteressado. A poesia tem muito a dizer sobre qualquer coisa, incluindo nosso futuro pós-humano. Foi pensando nisso que decidi desafiar mais de cem poetas a escrever um poema lírico ou narrativo sobre qualquer tema relacionado ao avanço da tecnociência e da biotecnologia. O resultado foi espantoso. Dessa colaboração surgiram quatro livros fora do comum. São os volumes um, dois e três (em dois tomos) da coletânea Hiperconexões: realidade expandida. Eles provam que a boa ficção científica não acontece apenas em prosa.
Janaína Quitério é jornalista com especialização em economia do trabalho e sindicalismo (Cesit-Unicamp), em jornalismo literário (ABJL) e em jornalismo científico (Labjor-Unicamp). Atualmente, cursa mestrado em divulgação científica e cultural (Labjor-Unicamp).