Por Caroline Marques Maia
O isolamento físico inédito durante a pandemia de Covid-19 tem impactado também o ambiente e os animais. De acordo com cientistas, algumas espécies podem se beneficiar temporariamente da retração da ocupação humana, mas ainda é cedo para afirmar que a natureza esteja se recuperando dos estragos causados pelo homem ao longo das últimas décadas. “Os pesquisadores não estão ‘em campo’, o que dificulta estudos mais aprofundados em tempo real”, diz a bióloga Lilian Sander Hoffmann, doutora em biologia animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e bolsista do Programa Arquipélago e Ilhas Oceânicas da agência federal CNPq.
Lilian desenvolve um projeto de pesquisa com golfinhos nariz-de-garrafa, que tem como um dos focos a conservação desses animais. Golfinhos, aliás, viraram assunto na pandemia com a circulação de imagens desses animais supostamente nos famosos canais de Veneza (Itália) graças ao isolamento social. As fotos foram feitas em Sardenha, na Itália, onde os golfinhos já eram vistos antes da Covid-19.
A bióloga conversou com a reportagem sobre conservação e impactos da pandemia no ambiente e nos animais — especialmente no caso dos golfinhos. Acompanhe a seguir.
ComCiência – Temos visto a divulgação de notícias sobre impactos supostamente positivos na vida de animais silvestres durante a quarentena em função do novo coronavírus. Por exemplo, pandas acasalando em um zoológico vazio de Hong Kong após dez anos, o nascimento de tartarugas-de-pente em praias vazias ou diversos exemplos de animais aparecendo nas cidades em locais antes muito ocupados por humanos. Esses impactos são positivos para a vida silvestre?
Lilian Sander Hoffmann – Essas notícias são inspiradoras, pois imagens de animais silvestres nos encantam. Mas ainda é cedo para qualquer afirmação preditiva referente à extensão do benefício que a quarentena geraria. Os pesquisadores não estão ‘em campo’, o que dificulta estudos mais aprofundados em tempo real. Pode ser que alguns efeitos mais rápidos sejam notados em áreas urbanas, porque é justamente onde estamos e é onde menos esperaríamos ver animais transitando.
Em áreas preservadas ou afastadas dos centros urbanos, os benefícios da melhoria da qualidade ambiental podem levar algum tempo para serem percebidos.. Algumas espécies levam décadas para se reproduzirem e efeitos deletérios de contaminantes, por exemplo, ainda perdurariam mesmo que a causa fosse encerrada hoje. Outros podem se beneficiar de mudanças de forma mais imediata: aves podem voltar a nidificar em certas áreas, peixes podem reocupar canais outrora poluídos. A natureza pode dar mostras de reparos momentâneos, mas isso não significa dizer que esteja se recuperando.
Tartarugas marinhas podem se beneficiar temporariamente da retração da ocupação humana nos seus locais de desova, tanto pela diminuição da predação direta sobre os animais e seus ovos, como pela redução de atividades e fontes de iluminação artificial, que as desmotivam a desovar ou as atraem para locais de risco. Muitos animais terrestres habitam locais no entorno de cidades. Com nossa ausência, eles podem estar se ‘aventurando’ em áreas antes evitadas, assim como em horários mais diurnos. Mas resta a dúvida se isso seria saudável para eles, pois muitos podem estar atrás de comida, por exemplo, entrando em contato com resíduos descartados, e podem acabar se contaminando. Além disso, com a diminuição do tráfego, os atropelamentos foram temporariamente reduzidos, o que é benéfico para os indivíduos. Mas isso não pode ser considerado uma solução para o problema do meio ambiente.
ComCiência – Recentemente circularam imagens de golfinhos supostamente nos famosos canais de Veneza (Itália) graças ao isolamento social — mas as fotos foram feitas em Sardenha, na Itália. Seria de fato possível que esses animais aparecessem em Veneza por causa do isolamento social humano?
Lilian Sander Hoffmann – Em alguns locais no Adriático, devido à redução do tráfego de embarcações, poderiam ocorrer um aumento de avistagens de golfinhos e baleias, visto que algumas espécies já habitam essa região. O golfinho nariz-de-garrafa é a espécie avistada com mais frequência nessa região. Veneza, com seus canais de profundidade média de 5m, apresenta uma configuração interessante, que poderia ser atrativa para espécies que costumam explorar habitats costeiros. Golfinhos que habitam regiões próximas do litoral muitas vezes adentram barras, rios e canais, em geral em busca de alimento, aparecendo até mesmo em regiões portuárias. Há registros históricos de outra espécie, o golfinho comum, a mais abundante na região até meados do Século 19, dentro dos canais de Veneza, mas hoje em dia a avistagem de qualquer cetáceo dentro da laguna de Veneza seria um evento excepcional.
ComCiência – Ainda sobre o caso dos ‘golfinhos de Veneza’: como fake news desse tipo podem impactar nossa compreensão e nossas ações em relação aos animais?
Lilian Sander Hoffmann – Há certa euforia na ideia de que, subtraindo o ser humano, a natureza se recomporá rápida e facilmente. Um tanto quanto ingênua e simplista, ela é catalisada em tempos como esses, onde o futuro parece estar em xeque. Talvez com certo sentimento de culpa por tudo que a humanidade vem fazendo, gostaríamos de crer que nossas ações ainda tem conserto.
Certamente, o compartilhamento de imagens de animais silvestres em áreas até então dominadas pelo homem ajuda a criar essa expectativa. Não lembramos que, mesmo que desaparecêssemos, deixaríamos um trágico legado de plásticos, detritos, resíduos tóxicos, redes perdidas nos oceanos, minas e armadilhas, entre tantas outras “contribuições humanas”. E que os animais estariam fadados a entrar em contato com elas. Meu temor é que o pós-isolamento se transforme numa espécie de voraz corrida atrás do “tempo perdido”, intensificando-se ainda mais o turismo irregular, a exploração e o consumo, baseados na auto ilusão de que a natureza já se recuperou. A ciência terá um papel ainda mais importante, pois precisará desmistificar essas ideias.
ComCiência – Considerando sua especialidade, o que você pode nos dizer sobre os impactos que essa pandemia e o consequente isolamento em massa das pessoas pode, de fato, estar trazendo para os golfinhos?
Lilian Sander Hoffmann – A diminuição da frota de embarcações ao redor do mundo está tendo, com certeza, um efeito nos ecossistemas marinhos. Há décadas, o aumento do ruído ambiental marinho vem sendo monitorado, provocando diversas alterações nas comunidades naturais. Muitos organismos são extremamente sensíveis ao impacto sonoro. Golfinhos e baleias são particularmente interessantes, uma vez que dependem exclusivamente do som para atividades vitais como alimentação, orientação, reprodução e comunicação. Atividades humanas que adicionam ruído ao ambiente acabam forçando várias espécies a se adaptarem: eles podem evitar uma área por determinado tempo, fazer modificações em suas rotas usuais, ou mesmo escolher outros locais para suas atividades. Essa é uma oportunidade ímpar para avaliarmos o efeito da diminuição do ruído marinho. Equipamentos de monitoramento acústico já estão apontando para um declínio de até cinco decibéis, na faixa de frequência relacionada ao tráfego de embarcações. Esse “alívio” temporário pode estar beneficiando diretamente baleias, golfinhos e outros organismos aquáticos.
Além disso, houve uma desaceleração global do setor de pesca comercial, que caiu até 80% na China e África Ocidental (Global Fishing Watch, que monitora a atividade de pesca via satélite), com embarcações no mundo inteiro paradas nos portos. Lembrando: a frota legalizada! Ainda não se sabe quais os efeitos dessa desaceleração sobre os estoques pesqueiros e em toda a cadeia alimentar marinha, incluindo os golfinhos, considerados predadores de topo. Seria necessário pelo menos um ano de redução da exploração para que algumas espécies de peixes completassem seu ciclo de desova. Isso permitiria a recuperação de várias espécies, entre elas algumas sob forte pressão comercial. Espécies menores podem apresentar uma resposta mais imediata, desencadeando uma visível atividade por parte de seus predadores. Ainda assim, acredita-se que uma parada temporária não vá mudar toda uma cultura e indústria da pesca, podendo inclusive ter um efeito rebote mais adiante.
ComCiência – Medidas de proteção e de preservação do ambiente podem ser retardadas com base no argumento de que o isolamento está melhorando as condições do meio ambiente agora?
Lilian Sander Hoffmann – Pela primeira vez, teremos dados de monitoramento do “antes” (pré-isolamento) e do “depois”. O ar e as águas estão visivelmente mudando, com relatos de diminuição da poluição ao redor do mundo. Os mares estão mais silenciosos.A ciência ainda não tem respostas, visto que tudo ainda é muito prematuro, mas com certeza não serão alguns meses que irão recuperar décadas de pressão humana sobre os ecossistemas. Espécies já foram perdidas e contaminações ainda perdurarão por centenas de anos. Algumas coisas são irreversíveis, e a sociedade deve ter cuidado no período subsequente à quarentena. Incontestavelmente, será usado o pretexto da “recuperação da economia”, e a exploração dos recursos naturais pode chegar ao extremo. Se fizermos isso nos mesmos moldes de sempre, o efeito para a natureza será devastador.
Dizem que a mente humana tende a voltar à “zona de conforto”, apenas por já ser conhecida. Mas também sabemos que situações extremas podem trazer à tona a capacidade de adaptação e criatividade da nossa espécie. A pergunta não deve ser “quando poderemos retornar às nossas atividades”, mas quais dessas são realmente importantes, e como devem ser reconduzidas. Pessoalmente, gostaria que fosse um tipo de mundo mais silencioso (de ruídos humanos) e mais recheado com os sons dos seres que habitam esse planeta, tanto em cima como embaixo da água!