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O Espaço da Diferença
Antônio Augusto Arantes (org.)
Campinas, Papirus, 2000.

por - Claudia Castellanos Pfeiffer [1]

Em meados deste ano 2000, pudemos contar com o lançamento de O Espaço da Diferença, livro organizado por Antonio Augusto Arantes, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas . Este volume foi organizado com um duplo objetivo que, sem dúvida alguma, se realiza plenamente: o de servir de referencial didático para alunos da área de antropologia urbana e o de provocar discussões profundas e produtivas entre pesquisadores de diversas áreas que se ocupam com questões pertinentes às cidades, suas configurações urbanas do social, das relações entre sujeitos e espaços vividos.

São estudos, pois, que contemplam a tão almejada interdisciplinaridade, sem no entanto - e esse é sem dúvida um dos grandes méritos do conjunto deste volume -, produzir um amálgama de disciplinas sem referenciais teóricos e metodológicos. Importa ainda localizar sua concepção: o livro (constituindo-se de 12 ensaios e 13 autores) foi organizado a partir dos trabalhos de ensino e pesquisa no interior da área Espaço e Poder do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, através dos projetos Construindo a Democracia: cidadania, nação e a experiência urbana contemporânea (financiado pela Fundação Rockefeller) e Identidades: reconfigurações de cultura e política (apoiado pelo programa nacional Pronex/Finep).

Livro composto por estudos de questões brasileiras e internacionais, os autores que dele participam (de diversas nacionalidades) têm em comum a necessidade de dar visibilidade a práticas sociais que se caracterizam hoje, fortemente, nas palavras de seu organizador, pela presença de "informações, princípios éticos e argumentos construídos em espaços sociais mundializados". Espaços sociais que, no enredamento das atuações da academia e dos profissionais que se voltam para esta questão, como as atuações do mercado de bens culturais e das instituições de comunicação, têm ganhado novos sentidos que deslocam suas relações com o espaço urbano, com o espaço vivido. É importante chamar a atenção para o fato de que não é o acaso que leva o organizador a falar em espaços sociais mundializados. Os diversos estudos presentes no volume bem demonstram o esvaziamento de sentidos e sua banalização produzidos pelo emprego do termo 'globalização', massiva e largamente utilizado, sobretudo pela mídia em geral.

Alguns ensaios atentam para a questão da designação de regiões como patrimônio cultural e/ou cidades históricas o que tem se configurado como referencial na construção de um "sistema mundial de circulação de pessoas, signos e capitais", em que lugares específicos demandam sentidos e reconhecimento no processo de identificação de sujeitos nacionais (ou singulares ?) que circulam por espaços mundializados, sobretudo marcados por sua fetichização. É a partir deste processo que podemos compreender o atual crescimento de solicitações, por parte de regiões que já se conformam e se identificam historicamente como "sítios naturais" ou "cidades históricas", de um reconhecimento oficial por instituições como a UNESCO de sua importância como "bens do patrimônio cultural".

Neste sentido, as autoras Sharon Zukin e Lia Motta apresentam grandes contribuições. A primeira mostra que algo mudou na maneira pela qual organizamos o que vemos, processo através do qual construímos novas paisagens urbanas. Zukin toma emprestado o conceito de 'paisagem' dos geógrafos e historiadores da arte que já a definiam como uma construção material, representação simbólica das relações sociais e espaciais. A autora chama a atenção para um processo contemporâneo que caracteriza estas paisagens - o da apropriação cultural - e para seu efeito mais evidente: o do enobrecimento da região e conseqüente expulsão de seus moradores ou dissociação destes com o espaço em que vivem. Este processo, que se dá de diversas formas, pode ser exemplificado através de duas práticas: a) uma apropriação dirigida, por exemplo, por artistas que ocupam antigas áreas urbanas com o objetivo de revitalizá-las, funcionando tanto como consumidores primários que produzem novos bens culturais para consumo próprio, quanto como referenciais de novas categorias culturais que participam do efeito de enobrecimento da região; b) uma apropriação indiretamente dirigida, por exemplo, durante um passeio a pé, através do olhar dos passantes que resignificam os antigos prédios como um lugar nostálgico, do belo, da herança e apontam para seus moradores a responsabilidade (vista como irresponsável) pelo aspecto maltratado e mal usado destes edifícios. Há neste gesto um duplo efeito: o do enobrecimento da região enquanto um patrimônio histórico e o da inadequada presença dos moradores que não sabem olhar o valor dos prédios que ocupam. Este estudo mostra a necessidade de não nos limitarmos a ver as investidas, cada vez mais freqüentes, de revitalização de espaços considerados como patrimônios culturais como uma simples prática de manutenção da herança de uma dada região.

Nesta mesma direção, Lia Motta, que elege como fato analítico o "Projeto para remodelação da Praça XV" no Rio de Janeiro, mostra a importância de se compreender o modelo que tem fundamentado as práticas de intervenção em áreas consideradas históricas, apropriando-se destes lugares que passam a funcionar como referenciais de conhecimento, de história, de memória, ao mesmo tempo em que funcionam como consumo visual, como produtos na disputa entre cidades dentro de um mercado mundializado. Funcionamento que é causa e efeito de uma apropriação dos lugares que desconsidera a cidade como objeto socialmente construído e seu patrimônio como fonte de conhecimento. Isto é, uma apropriação que apaga, sob o argumento da preservação, o espaço vivido (com memória e sujeitos vivendo dentro) para plastificar (cenografar) uma paisagem de consumo fácil, sob a forma do patrimônio histórico, sob a forma contraditória da "memória viva" de um povo a-histórico. As intervenções usuais baseadas neste modelo oferecem o patrimônio cultural como mercadoria, igualando o bem coletivo aos produtos de consumo, fazendo deles marketing cultural, griffes.

Ao lado deste e de outros acontecimentos recentes, como a intervenção das novas tecnologias de comunicação e de transporte, no espaço vivido pelos sujeitos, alguns ensaios trabalham questões mais fundamentalmente teóricas, derivadas exatamente dos efeitos que estas novas paisagens urbanas produzem não somente nos sujeitos que se instalam nestes lugares como naqueles que teorizam sobre estes espaços. Se até há pouco tempo não se questionavam fortemente a clareza e distinção de categorias como etnia, raça, classe, gênero e condição profissional, entre outras, hoje tais categorias são vistas como móveis, com fronteiras tênues e muitas vezes ambíguas e permeáveis. Os estudos, em seu conjunto, apresentam uma proposta teórico-metodológica de se trabalhar com processos e não com categorias fixas que tocam apenas em produtos, para compreender "a formação de espaços públicos, os modos através dos quais se constituem as referências espaço-temporais nas relações sociais contemporâneas" que se caracterizariam fortemente por processos que deslocam o espaço vivido destas relações para um só sentido : o de bens de consumo. Fundamentalmente, os autores perguntam-se, como coloca o organizador, pelo modo através do qual "se forma e se reconfigura nas metrópoles o espaço da diferença".

As idéias que transitam neste volume, a partir de análises de um corpus variado, sob formas mescladas de ensaio, debates transcritos, narrativas de estudos de campo, levam o leitor a questionar o próprio conceito de diferença e o papel do profissional - seu lugar ético - que se coloca a tarefa de compreender os sujeitos culturais e que, por isso mesmo, precisa sempre indagar-se sobre a noção de cultura e seus correlatos e a naturalização de conceitos que passam a fazer parte do discurso comum, sobretudo o discurso mediático, banalizando práticas sociais. Hommi K. Bhabha, a partir de sua análise e objeções às idéias dominantes nas Conferências do "Terceiro Cinema" de Edimburgo (1986), defende a impossibilidade de dissociação da teoria e sua ordem política, isto é, toda teoria é construída sob uma posição política, não há, pois, "teorias alienadas" e "teorias comprometidas": toda teoria é comprometida a despeito dos anseios contrários ou não daquele que teoriza : uma teoria é sempre uma política da interpretação. O texto de Bhabha que inicia o volume é o primeiro a chamar a atenção para uma diferença fundamental entre os conceitos de diversidade cultural e de diferença cultural, mostrando que tratar a ordem do social como um amálgama de diversidades culturais implica em trabalhar-se sob a forma do multiculturalismo que folcloriza singularidades, mantendo uma forma elitista de cultura como quadro referencial. Diferentemente, ao se tratar a ordem do social a partir do conceito de diferença cultural, leva-se em conta uma definição que se dá somente pela relação e não por si mesma. A diversidade pressupõe culturas fechadas coexistindo em relação de poder entre aquilo que é culto e aquilo que é regional, folclórico, exótico. De outro modo, a diferença cultural é o hibridismo, o traço distintivo que só se marca na relação do sujeito com o outro, deslocando a coletividade fechada para o sujeito que circula nos espaços em relação sempre com outros sujeitos, no contínuo embate das diferenças. É exatamente para discutir a questão da diferença que Akhil Gupta e James Ferguson reavaliam o conceito de 'cultura', central na Antropologia, e, por extensão, o de 'diferença cultural'. Os autores apontam para os efeitos produzidos pelos deslocamentos efetuados pela teorização pós-modernista e feminista de espaço, que introduz noções como 'vigilância', 'panopticismo', 'simulacro', 'desterritorialização', 'hiperespaço pós-moderno', 'fronteiras' e 'marginalidade', todos conceitos que dissociam a cultura da Sociedade e do Estado. Desfazendo, por exemplo, a naturalidade com que tomamos como expressões coincidentes dizer que um turista vai à Índia para conhecer a "cultura indiana", a "sociedade indiana", "a Índia". O espaço discutido por estes autores e apresentado ao leitor não é um recipiente neutro em que a diferença cultural, a memória histórica e a organização social são inscritas. O espaço tem em si sentidos que organizam e dão visibilidade de modo específico aos sujeitos, com suas memórias, culturas e ordens sociais. Para mostrar como a questão do espaço não é simples nem transparente, o leitor é colocado diante da pergunta de como é possível se dar conta, por exemplo, dos habitantes das fronteiras, dos trabalhadores "nômades" que passam metade do ano em um país e metade em outro, ou dos imigrantes, dos exilados, dos refugiados, dos colonizados? Carregamos nossa cultura conosco nestas transições todas? Forma-se uma nova cultura? Voltamos novamente, junto com os autores, para a questão da diferença cultural, conceito que permeia todo o conjunto dos ensaios deste volume que, dialogando entre si, muitas vezes, explicitam, a partir de prismas diversos, uma compreensão mais extensa de seu conceito e de seus correlatos. É o caso por exemplo da noção de cultura localizada. De um lado Grupta e Ferguson mostram a necessidade de tratar da diferença cultural abandonando o clichê de cultura localizada, o que permitiria ver formas de solidariedade e identidade que não repousam sobre uma apropriação do espaço em que a contigüidade e o contato pessoal sejam fundamentais. Levar em conta esta nova organização do espaço passa a ser nodal para a reflexão sobre políticas de comunidade e também para pensar os efeitos desta dissociação na própria significação dos lugares : se lugar e povo podem dissociar-se, é preciso levar em conta a diferença cultural como parte de um processo histórico compartilhado que, ao mesmo tempo em que diferencia o mundo, também o conecta. Sobre esta mesma questão debruçou-se Doreen Massey, apresentando uma perspectiva mais abrangente de cultura local. Argumenta a autora que a aceitação geral de expressões como "aceleração", "aldeia global", "superação de barreiras espaciais", veiculadas por um discurso disponível sobretudo através das mídias, faz com que se diluam os sentidos de um lugar local, suas particularidades. Esta diluição produz inclusive a impressão de que, em algum momento na história, lugares específicos eram habitados por comunidades coerentes e homogêneas, contrapondo-se ao momento contemporâneo em que a introdução das novas tecnologias de linguagem, por exemplo, torna a todos cidadãos do mundo, marcados pela fragmentação e ruptura. Massey vê neste movimento ainda um outro efeito : o de que buscar sentidos locais seja vinculado apenas a um movimento nacionalista reacionário, no limite fascista. Ela propõe um outro lugar para falar destes sentidos locais que desloque a própria idéia de que o sentido de lugar se constrói a partir de uma história fechada, baseada na busca de origens internalizadas. Deslocando-se destes sentidos reacionários, ela define o "lugar local" como um lugar de encontro : momentos articulados em redes de relação e entendimentos sociais, integrando de forma positiva o global e o local. Flores e Ramón, por sua vez, discutindo também questões de contato, mostram que as experiências da América Latina e Caribe, bem como dos mexicanos-americanos e porto-riquenhos, auxiliam na ampliação dos horizontes políticos e culturais na direção de uma perspectiva transnacional que ofereça outras bases para se pensar os processos de identificação e conquista de lugares legitimados. Por outro lado, Featherstone, diante das novas tecnologias, pergunta : se faz parte da própria condição humana observar e dar sentidos para os objetos ao seu redor e se esta necessidade se materializa no século XIX na condição do flâneur, quais são os efeitos, nesta necessidade de contemplação da flânerie, das recentes modificações dos meios de transporte e comunicação. Os meios mudam, resta perguntar no que mudam os modos de observação. Oliveira mostra que o uso banalizado de termos vinculados à noção de 'globalização' nivela em um só, para qualquer lugar, os diversos efeitos que a mundialização pode efetivar nas relações sociais : é preciso, pois, defende o autor, um refinamento deste conceito e de seus correlatos de modo que não se apaguem as diversas faces de articulação dos processos simultâneos de globalização e localização. Como fato analítico, Oliveira trabalha com as relações de enfrentamento entre associações civis e grupos de « proprietários » da Av. Paulista (SP), de um lado, e os camelôs e vendedores ambulantes, de outro lado. Nestas relações é produzido um discurso dominante, sobretudo na mídia, que significa os agentes do assim chamado « comércio informal » no lugar da insegurança, do lixo, da poluição, da degradação de um bem público : a rua e, especificamente neste caso, o patrimônio histórico que constitui a Av. Paulista. Sentidos que produzem uma visibilidade de incapacidade de ação do Estado, do poder público, transferindo, legítima e naturalmente, as resoluções para as mãos das Associações Civis (como a « Paulista Viva ») que produzem e se apropriam de uma « cultura pública privatizada ». Relações sociais marcadas pela hostilidade que podem ser observadas através da intervenção, segundo o ensaio de Hélio Silva, de uma « subcultura da evitação » : processo que faz do espaço público um não-lugar em função de uma construção (histórica) de uma não-coincidência dos sujeitos e seus marcos referenciais que constituem uma base material para o processo de identificação : não se efetuam sentidos, não se constituem lugares. Os indivíduos não se reconhecem, não reconhecendo o outro, não reconhecendo seu lugar, nem o do outro.

Smith faz conhecer ao leitor o « veículo do Sem-Teto », projeto do artista Krzysztof Wodiczko de Nova York exibido pela primeira vez em 1988. O autor busca analisar os efeitos desta intervenção estética, levantando o debate sobre as categorias e políticas da diferenciação espacial, o que levaria ao estranhamento das tradicionais divisões em localidades, bairros, regiões, nações, apontando para a escala geográfica (que pode ir do corpo, passando pela casa, rua, comunidade, cidade, região, nação) como historicamente dada e, portanto, como um lugar de luta política.

Pensando mais especificamente sobre a questão nodal, para a Antropologia, do trabalho de campo (que implica em um movimento contínuo), o texto de Clifford avalia o modo como a análise cultural constitui seus objetos : isto é, as sociedades, tradições, comunidades, identidades. O trabalho de campo não pode dissociar-se de uma prática política, de uma prática ética que institui sentidos para a sociedade, para a cultura, que são apropriados, bem ou mal, pelo discurso mediático, perpassando os dizeres cotidianos, do senso comum sobre nós mesmos. Os sentidos de se "estar em trânsito" e de se estar "morando" precisam ser revisitados e reconsiderados pela antropologia de hoje : morar não pode mais ser reduzido a uma simples base de partida e de retorno de viagens, do trânsito. "Moradia-em-viagem", "viagem-em-moradia" são categorias novas trazidas para estas novas paisagens que se conformam. Nestes percursos, a memória vem tomando forma de um elemento essencial para a reflexão sobre os sujeitos em trânsito ou não, já que a identidade (enquanto processos de identificação) é uma configuração processual de elementos historicamente dados, incluindo-se aí raça, cultura, etnia, classe, gênero, sexualidade. Segundo o autor, não há escolhas voluntaristas, mas historicamente determinadas, no percurso de reconhecimentos identitários.

Enfim, os ensaios deste volume tratam de, ao analisar fatos contemporâneos, estender e revisitar conceitos fundamentais e tradicionais da Antropologia, mostrando, pois, com seriedade e conseqüência a importância de não fecharmos uma teoria em conceitos imobilizados que limitam a própria compreensão dos objetos da ciência que, como ela, são históricos. Estudos fundamentais tanto para pesquisadores e alunos da área, quanto para leitores que se interessam em compreender os sentidos em que nos enredamos, buscando compreender as configurações urbanas das relações socias.

[1] Doutora em Lingüística, na área da Análise do Discurso, pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. É pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) do Núcleo de Desenvolvimento da Criativida (Nudecri) da Unicamp.

Atualizado em 10/12/00
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