Editorial:

O mistério da impiedade
Carlos Vogt

Reportagens:
Violência e Segurança: questões de Política
Um novo cotidiano para as favelas cariocas
Sociedade se mobiliza contra a violência
Penas alternativas e dignidade humana
Mídia dramatiza a violência
TV não provoca comportamento violento
Violência extrema pode ter causas biológicas
Artigos:
O desafio da violência
Gilberto Velho

A Guarda Municipal e a Segurança Públical
Eliezer Rizzo

Guerra e Paz refletem a natureza dupla do homem
Ulisses Capozolli
Trabalho, pobreza e trabalho intelectual
Carlos Vogt
Bitita
Carolina Maria de Jesus
O Bolsão ou A Vida
Eni Orlandi
Poemas:
A Edificação do Ódio
Carlos Vogt
Parábola de Mulher
Carlos Vogt
Bibliografia
Créditos
 

Trabalho, pobreza e trabalho intelectual[1]

Carlos Vogt

I

"Morreu como sempre viveu: pobre."

Termina assim, conforme noticiaram os jornais da época, o pequeno discurso de improviso feito por um orador anônimo aos pés do leito derradeiro de Carolina Maria de Jesus.

Apesar da frase de efeito do simpatizante de Carolina, ela nem sempre viveu na pobreza. Ao menos, não viveu sempre na mesma pobreza que o seu livro Quarto de Despejo[2] retrata.

O fato de ter transformado sua experiência de favelada num diário-reportagem tirou-a da favela do Canindé, onde viveu mais de nove anos, e a fez conhecer, ainda que por brevíssímo tempo, a glória, a fama, "o mundo e os fúteis ouropéis mais belos". Mas, ao contrário do ser místico que no soneto de Cruz e Souza triunfa supremamente sobre os vícios, as lutas, e as ilusões terrenas, Carolina jamais conviveu tranqüilamente com as lembranças do sucesso efêmero.

A se dar crédito aos jornais e às poucas entrevistas que se fizeram com ela no retiro do pequeno sítio de Parelheiros, morreu triste, abandonada e incompreendida. Ao que parece, sem compreender que os mecanismos sociais que promoveram o seu destaque laboraram também o seu esquecimento.

II

Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais, no ano de 1914, provavelmente. Mudou-se com a mãe viúva e os irmãos para uma fazenda, quando cursava o segundo ano primário. Estes dois anos mal cumpridos constituirão toda a sua escolaridade. De volta a Sacramento, e com a morte da mãe, vem para São Paulo em 1937.

Trabalha como empregada doméstica em diversas casas até que, grávida de seu primeiro filho, já não a aceitam para esse tipo de serviço. Muda-se para a favela e tem mais dois filhos. Três ao todo, dois meninos e uma menina, cada um de um pai diferente.

Carolina não se casou. Tampouco teve um companheiro fixo. Não por falta de propostas. Muito menos de amores.

Em 1958 aparece a primeira reportagem sobre seu diário no jornal Folha da Noite. No ano seguinte, é a vez da revista O Cruzeiro de divulgar o retrato da favela feito por Carolina. Era o aceno do sucesso e da popularidade. O abraço viria em seguida, a partir de 1960.

Publicado pela Livraria Francisco Alves, Quarto de Despejo teve a sua primeira edição de dez mil exemplares esgotada na primeira semana do lançamento. Nove edições foram feitas no Brasil, sem contar a edição de bolso de 1976, um ano antes da morte da autora. O livro foi traduzido para treze línguas e circulou em quarenta países. Carolina Maria de Jesus, a favelada-escritora, passou a ser assunto constante de jornais e revistas nacionais e internacionais, com amplas reportagens em Life, Paris Match, Epoca, Réalité e Time. Esta última compara os oitenta mil exemplares vendidos do livro ao sucesso comercial de Lolita, de Nobokov.

No lançamento de Quarto de Despejo, presente uma multidão, além de artistas e autoridades. Entre estas, o ministro do Trabalho de Jucelino Kubitscheck - João Batista Ramos - que promete uma casa para a autora. Não deu.

Contudo, o êxito comercial do livro permite-lhe comprar uma, de alvenaria, no bairro de Santana, onde passa a morar com os filhos até 1964.

São os anos dourados da transformação que atravessa sua vida: viagens, jantares, contactos com presidentes, entrevistas, participação em congressos, vida de artista. Em 1961, por exemplo, participa do II Festival de Escritores, realizado no Rio de Janeiro. Volta desiludida e revoltada com o encontro e em particular com Jorge Amado, organizador do Festival, que segundo ela teria boicotado a venda de Quarto de Despejo para favorecer a de Gabriela, Cravo e Canela.

O descenso do prestígio de Carolina coincide com o fim do populismo oficial no país e com a virada política do golpe militar.

Deixa a casa de Santana para viver nos oito mil metros quadrados de terra que compra em Parelheiros, a quarenta quilômetros mais ou menos de São Paulo.

Publica outros livros. Um deles - Casa de Alvenaria - em edição comercial ampla, escudada no êxito do primeiro. Se a casa de Santana não deu certo, o livro sobre a sua experiência com a nova moradia tampouco. Financia a publicação de Provérbios e Pedaços de Fome ainda com o dinheiro recebido pelas vendas de Quarto de Despejo. O fracasso parece ser definitivo.

Em 1966, os jornais voltam a falar da autora. Teria sido vista na rua Helvetia, maltrapilha e exercendo a "profissão" que sempre exerceu nos anos em que morou na favela: a de catadora de papéis. Queixa-se, na ocasião, das dificuldades que tem para conseguir trabalho e mesmo de vender o que recolhe pelas ruas. Os comerciantes da pobreza se recusam a negociar o lixo da cidade com uma estrela. Entre parênteses, a situação de Carolina Maria de Jesus, nestas circunstâncias, é muito parecida com a dos negros do Cafundó que postos em evidência por pesquisadores e jornalistas, em virtude do vocabulário africano conservado ativamente em sua comunidade, passaram a ter sérias dificuldades para encontrar trabalho como diaristas, sob a alegação dos patrões de que artistas não precisam trabalhar.

Mas Carolina não abandona a atividade de escritora. Escreve os romances Felizarda e Os Escravos (incompleto), nos quais pretende tratar da vida dos ricos. Escreve também Um Brasil Para Brasileiros, onde conta suas memórias entremeadas por narrativas de fatos históricos que marcaram a vida política do país na década de vinte e começos dos anos trinta. Nenhum destes livros foi publicado no Brasil.

Em Parelheiros vive numa pequena casa com os filhos. Algum plantio, alguma criação - galinhas e porcos -, uma venda de beira de estrada que não dá certo, por causa dos fiados, segundo ela própria explica.

Reaparece nos jornais em 1976. Neste ano é lançado em edição de bolso o seu primeiro livro - Quarto de Despejo.

Agora vive apenas com o filho mais velho. Os outros dois se casaram e Carolina é avó de quatro netos.

É na casa de José Carlos, o segundo filho, um barraco, que ela morre no dia treze de fevereiro de 1977.

Em 1982 é publicado na França o livro Journal de Bitita (Um Brasil Para Brasileiros). Em 1983, a rede Globo adapta para o programa Caso Verdade o livro Quarto de Despejo que já conhecera, nos anos de sucesso, uma outra adaptação para o teatro e que, durante algum tempo, dera também à autora, na solidão de Parelheiros, o sonho de vê-lo transformado em filme nos Estados Unidos.

III

Quarto de Despejo, tal como o público o conheceu, é o resultado impresso de um trabalho de cortes e pequenos acertos feitos pelo jornalista Audálio Dantas sobre os originais de trinta e cinco cadernos manuscritos nos quais Carolina Maria de Jesus foi registrando o seu dia-a-dia na favela do Canindé.

O livro, enquanto diário, apresenta uma certa descontinuidade. Os registros começam no da 15 de julho de 1955 e são interrompidos no dia 28 de julho do mesmo ano. Retomados no dia 2 de maio de 1958, estendem-se, com breves interrupções, até 1º de janeiro de 1960.

A essa descontinuidade cronológica do registro não corresponde, entretanto, uma quebra na estrutura narrativa do diário. Os dias vazios de anotações são preenchidos pela extensão metonímica dos dias plenos, através de um recurso de estilo bastante simples, mas eficiente: o da repetição. Os dias se repetem iguais na monotonia implacável de um dia de todos os dias: levantar cedo, ir buscar água na única torneira que serve a mais de cento e cinqüenta barracos iguais ao de Carolina, atender aos filhos, sair para a cidade em busca de papel, de lata, de ferro, sobrecarregar-se com o peso de seu transporte, vender a sucata recolhida nas ruas, comprar os alimentos que serão consumidos no mesmo dia e na proporção exata do pouco dinheiro obtido no trabalho de todo o dia.

As significações podem variar, porque os incidentes registrados também se modificam. Mas essas variações convergem todas para uma estrutura narrativa, cujo ponto de sustentação principal é a presença obsidente da fome e da pobreza nas formas mais concretas de suas manifestações.

Alguém já comparou certas passagens mais líricas do diário de Carolina à singela beleza das Fioretti de São Francisco de Assis. Esta, por exemplo, em que a autora, referindo-se a uma vizinha da favela, escreve:

"Dona Domingas é uma preta igual ao pão. Calma e útil". (p. 52)

A comparação, além de motivos de ordem estilística, deve ter também apoio ideológico, certamente em virtude da tematização da pobreza, comum ao santo da Umbria e à favelada do Canindé. Mas só uma abstração de efeito retórico permite, na verdade, compará-los.

Se lembrarmos, por exemplo, a "parábola da Verdadeira Alegria" de São Francisco de Assis, nela veremos que a pobreza é um fim e um ideal que se convertem num instrumento didático para a redenção do homem, de modo que a verdadeira alegria é o sofrimento, o abandono e a fome. No livro de Carolina, porque a pobreza é um estado real e concreto de carência, algo que os protagonistas do drama da miséria vivem como condição social e não como projeto de vida exemplar, a alegria é também muito mais palpável e toca diretamente os sentidos:

"...Fiz a comida. Achei bonito a gordura fringindo na panela. Que espetáculo deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver nas panelas. Ainda mais quando é arroz e feijão, é um dia de festa para eles." (p.43).

Embora talvez se pudesse dizer de Carolina aquilo que já se disse de São Francisco - simplex in litteratura -, Quarto de Despejo apresenta a pobreza com a materialidade e a concreção de um objeto físico e não como a provação da carne para a redenção do espírito. Menos ainda, a pobreza é nesse livro a manifestação de estados psicológicos contraditórios, como é comum encontrar nas representações da vocação da classe média e da burguesia para um certo sentimento de culpa, muitas vezes pronunciado em termos de despojamento material e moral.

Assim, a pobreza em Quarto de Despejo não é de modo algum exemplar, no sentido de que não é uma construção simbólica com fins didáticos, mas um estado social de carência efetiva contra o qual só se pode lutar nos termos próprios das limitações dos meios que esse estado propicia.

Esta luta é vã, porque fadada a consumir-se no imediatismo do consumo dos recursos que o habitante da favela pode ter ao seu alcance.

A mediação das relações entre necessidades básicas e a sua satisfação pelo trabalho tem um grau tão elementar e primário que o próprio trabalho, longe de entrar na dinâmica do processo de produção e de transformação das condições sociais de seus agentes, constitui apenas um fator de reprodução das hierarquias que lhe determinam a forma, dando-lhe como conteúdo uma total ausência de futuro social. Amanhã será como hoje, hoje é como ontem, ontem foi como todos os outros dias anteriores e futuros.

Mesmo o dinheiro, mediação das mediações, deixa de ser aí um valor, uma abstração para ser, ele também, um objeto, uma coisa. O dinheiro-ferro, o dinheiro-papel, o dinheiro-arroz-e-feijão, enfim o dinheiro-coisa substitui o dinheiro-moeda e expressa, mais do que qualquer outro recurso de composição ou de figura de estilo, a realidade e a concreção da pobreza no mundo social que o livro de Carolina nos mostra.

Antonio Candido, na análise que faz do romance I Malavoglia (1881), de Giovanni Verga, observa um fenômeno semelhante[3]. Segundo o crítico, nesse romance, o dinheiro "parece transitar do mundo abstrato do valor para o universo denominado das coisas naturais" (p. 97) e constitui um recurso importante para dar expressão metafórica ao mundo fechado da pobreza.

Guardadas as devidas proporções, o mesmo se pode dizer da função do dinheiro no livro de Carolina. Aliás, muitos dos outros recursos utilizados pelo romancista italiano e apontados por Antonio Candido aparecem, certamente com menor ênfase funcional, em Quarto de Despejo. Entre eles, a repetição e o provérbio que no plano da narrativa e da linguagem contribuem para dar substância expressiva ao fechamento e à imobilidade do mundo social de que nos fala o diário de Carolina.

Quarto de Despejo é uma obra de gosto realista, na qual o verismo é a nota dominante da "ideologia estética" do autor. Contudo, o seu realismo estaria melhor caracterizado se, ao invés de literário, o víssemos dentro daquela espécie de realismo etnográfico desenvolvido pelo antropólogo Oscar Lewis nos anos quarenta e cinqüenta nos seus trabalhos sobre a cultura da pobreza[4]. A diferença, entre muitas outras, é que ao ficcionista, num caso, e ao antropólogo, no outro, substitui-se no livro de Carolina o autor como personagem da experiência existencial e social vivida, e o personagem como autor da mesma experiência, agora relatada. Se Lewis megulha sua pesquisa num dia de cinco famílias mexicanas pobres, Carolina desdobra no tempo sua pobreza e a dos favelados. Mas como os dias se repetem iguais e monótonos no ritual de fome-trabalho-sobrevivência, o resultado é, como dissemos, a construção, ao longo da narrativa, de uma espécie de diametáfora de todos os dias, tão denso e fechado na imagem quanto o dia etnográfico de Lewis o é nos detalhes.

Por este caminho o realismo de Quarto de Despejo reencontra a literatura, chegando ao ponto de apresentar a sua autora-personagem com uma certa dose daquele titanismo romântico, daquela majestade tenebrosa, a que se refere Antonio Candido em seu ensaio sobre Verga, e que, não raras vezes, são atribuídos nos romances naturalistas ao destino do pobre, quando jogado nos limites da sobrevivência. Se se pensar na grandiosidade do gesto suicida da escrava Bertoleza no final de O Cortiço de Aluísio Azevedo pode-se ter uma medida sugestiva desse titanismo.

Não se quer afirmar que Carolina Maria de Jesus exagera por um tique de escola literária, a que não pertence, a tragédia dos humildes e as tintas da autocomiseração. Mas também é verdade que o documento que nos oferece sobre a pobreza da favela tem um expediente intrínseco de distanciamento que produz no livro uma espécie de duplo complementar e antagônico da realidade que ele retrata. De um lado, a autora pertence ao mundo que narra e cujo conteúdo de fome e privação compartilha com o meio social em que vive. Do outro, ao transformar a experiência real da miséria na experiência lingüística do diário, acaba por se distinguir de si mesma e por apresentar a escritura como uma forma de experimentação social nova; capaz de acenar-lhe com a esperança de romper o cerco da economia de sobrevivência que tranca a sua vida ao dia-a-dia do dinheiro-coisa.

Assim, o diário de Carolina ao mesmo tempo em que se cola à realidade que mimetiza, constitui uma vingançca em relação a ela. Reproduzida em livro, esta realidade incorpora, como traço constitutivo do trabalho intelectual que a produziu escrita, a possibilidade do projeto e do futuro sociais que em si mesma ela excluía. Não é por acaso que a autora, semi-alfabetizada, mostra-se no livro distinta e distinguida dos demais favelados. O seu diário aparece freqüentemente como uma espécie de livro de São Miguel, livro do juízo, onde ameaça anotar os comportamentos "errados" de seus vizinhos. Carolina manifesta ao longo de todo o diário um acentuado pendor legalista e uma crença no trabalho que lembra muito a ideologia dos personagens dos sambas de Adoniram Barbosa, o Joca de "Saudosa Maloca", em particular[5].

No mundo dicotômico de oposições estanques que Quarto de Despejo nos apresenta, a oposição cidade/favela subsume uma série de outras não menos importantes para se compreender a geografia que o livro desenha e a circulação das necessidades e dos desejos da autora-personagem em meio a seus acidentes. Luz e sombra, brancos e negros, riqueza e pobreza, céu e inferno, integrados e marginais, casa de alvenaria e barraco, luxo e lixo são alguns dos termos que as caracterizam. Entre eles não há vasos comunicantes e mesmo o trabalho, como dissemos, na sua forma primária de trabalho-sobrevivência, se permite o contacto dos opostos não o faz senão para reforçar a sua separação. Mas Carolina sonha com as estrelas e não abdica de seu brilho. No plano mais concreto dos comportamentos sociais, ela funciona como um elo da ligação entre a cidade e a favela chamando, por exemplo, várias vezes a polícia para pôr ordem nas situações mais críticas da desordem que a favela representa.

Carolina é o chefe de uma família de pai ausente, de uma família contra o pai, se preferíssemos uma caracterização mais radical ao estilo de Pierre Clastres. Um tipo de família a que os antropólogos chamariam matrifocal e muito comum em sociedades que tiveram na sua formação e desenvolvimento a contribuição decisiva do trabalho escravo. Ao realismo prático que a faz entender que um marido no barraco seria antes de tudo mais uma boca para sustentar, associa-se em Carolina o ideal do artista que necessita de concentração criadora e também um certo estoicismo de resistência contra a pobreza material e moral do meio em que vive, conferindo-lhe no livro aquele traço de titanismo e de tenebrosa nobreza que acima referimos.

O repúdio da autora à situação em que se encontra é visceral. Da mesma forma e na mesma medida é por ela estranhada. Tanto que no dia em que ia se mudar da favela, depois do sucesso do livro, foi apedrejada pelos vizinhos. O ponto de estranhamento entre Carolina e os favelados é, sem dúvida, o livro. Escrevê-lo foi a forma que encontrou para tentar romper o fechamento do mundo em que vivia. A esperança que deposita nessa experiência é grande. E é muito provável que tenha sido renovada depois do conhecimento que a autora trava com o jornalista que a "descobriu" em 1958, quando retoma as anotações abandonadas desde 1955.

IV

Em Quarto de Despejo, a malandragem não é nunca um expediente de transformação ou de mobilidade sociais. Não é sequer alternativa ideológica para a pobreza real. Apenas uma das máscaras com que ela se manifesta num mundo de opressão atirado nos limites da mera sobrevivência.

Ao malandro, Carolina contrapõe o trabalhador, o operário e a inocência das crianças. De algum modo intui que para quebrar o círculo de reprodução da miséria é preciso mais do que simpatia. Por isso fala às vezes em revolução e denuncia com freqüência o populismo demagógico de muitos políticos importantes da época.

O seu livro despertou paixões e desencadeou movimentos para a eliminação das favelas em São Paulo. Há quem diga que a favela do Canindé desapareceu em conseqüência de suas denúncias. Outros lembram que a marginal do Tietê já estava planejada e que a favela sumiria de qualquer maneira por motivos mais estruturais de urbanização.

A agitação em torno do livro foi grande.

Tão grande que, ao menos no plano individual, Carolina pareceu encontrar a solução para os seus problemas. O trabalho intelectual produzia, enfim, o efeito de distinção dos méritos pessoais da favelada, transformando-a, numa semana, na autora de um dos maiores best-sellers do Brasil.

Desse modo, os mesmos mecanismos eletivos, presentes nas relações de trabalho fortemente hierarquizadas, e cujas conseqüências ela padece no fundo sombrio do quarto de despejo da cidade, são também o passe para a sua saída.

Carolina vive, então, como muitos outros pobres e negros no Brasil - Lima Barreto talvez seja o caso mais trágico de nossa literatura[6] - a esperança de resgatar, pelo prestígio intelectual, o prestígio social que nunca tivera.

Para isso era preciso continuar a escrever. Ela o faz.

Mas a novidade de Quarto de Despejo envelheceu. Foi consumida rápida e definitivamente. Os outros livros não vendem.

Carolina Maria de Jesus recolhe-se no pequeno sítio de Parelheiros. Experimenta, com fracasso, a solução que havia ela mesma defendido por escrito para a pobreza da favelas: voltar ao campo e ao trabalho com a terra.

Notas

[1] In: SCHWARZ, Roberto (org.). Os Pobres na Literatura Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 205-213. [voltar]
[2] Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, São Paulo, Livraria Francisco Alves (Editora Paulo de Azevedo Ltda.), 2ª. ed., 1960.[voltar]
[3] Antonio Candido, "O mundo-Provérbio (Ensaio sobre I Malavoglia)", Revista Língua e Literatura, São Paulo, nº 1, 1972, pp. 93-111.[voltar]
[4] Oscar Lewis, Antropologia da la Pobreza, México/Bogotá, Fondo de Cultura Económica, 1961.[voltar]
[5] Ver aqui mesmo o artigo de José Paulo Paes, "Samba, Estereótipos, Desforra". Também publicado no Folhetim, nº 309, de 19 de dezembro de 1982. [voltar]
[6] Para que se tenha uma medida da extensão dessa tragédia, ver, por exemplo, o artigo de Antonio Arnoni Prado, "A Correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto", Suplemento Literário - Minas Gerais, Belo Horizonte, Ano XV, nº 855, 19 de fevereiro de 1982, pp. 6 e 7.[voltar]

 

Atualizado em 10/11/2001

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2001
SBPC/Labjor
Brasil