Por Ernesto C. Pereira e Lucia Helena Mascaro
Cientistas buscam rotas alternativas que sejam ambientalmente mais amigáveis e sustentáveis e ao, mesmo tempo, viáveis economicamente de modo a tornar realidade o uso do hidrogênio como combustível.
“Hidrogênio: o combustível do futuro” é um slogan que atualmente encontramos em dezenas de sites e reportagens nos mais variados tipos de mídias, sejam elas de pesquisa, de divulgação científica ou de curiosidade jornalística. Mas qual seria a razão de tanto interesse? Primeiro temos que entender o porquê do interesse no hidrogênio como um combustível e depois o porquê da palavra futuro associada à primeira, e assim podermos inferir sobre os desafios na sua produção sustentável.
O hidrogênio é o primeiro elemento químico da tabela periódica e o mais abundante do universo em nosso planeta. O hidrogênio possui a maior quantidade de energia por unidade de massa comparado a qualquer outro combustível conhecido (145 MJ/kg). Entretanto, na Terra, majoritariamente ele não está disponível na sua forma molecular, mas sim ligado a outros elementos, formando hidrocarbonetos, biomassa, metano e água. Na sua forma molecular, (H2), atualmente é usado em uma série de aplicações em processos industriais e combustível para foguetes, mas no futuro espera-se a inclusão do uso de hidrogênio no aquecimento e iluminação de residências e geração de eletricidade, Figura 1 [1]. Atualmente são produzidas mais de 60 milhões toneladas/ano de hidrogênio no valor de quase US$ 100 bilhões. Hoje, 80% do hidrogênio que produzimos é para três indústrias principais: refinarias, produção de amônia e processamento de metal. Entretanto, existe a projeção de um aumento de até 10 vezes na demanda até 2050, devido ao seu uso como combustível, Figura 1 b [1].
Como mencionado, como combustível o hidrogênio é utilizado para geração de calor e transporte devido ao seu alto poder calorífico e baixo impacto ambiental. Podendo ainda ser utilizado nas células a combustível, para armazenar energia ou em turbinas. Dentro desse contexto, as células a combustível são o principal foco do uso de hidrogênio como um combustível do futuro, porque são consideradas uma real possibilidade de substituição dos veículos movidos a combustível fóssil, devido a sua emissão zero de CO2. Nesse caso, um dos desafios, não superado até este momento, é desenvolver novos materiais eletrocatalíticos eficientes e de baixo custo para tal finalidade.
Figura 1: Aplicações por categoria e demanda futura para uso do hidrogênio, adaptado de [2].
Como não há hidrogênio gasoso disponível na nossa atmosfera, uma importante pergunta a ser respondida é: Como produzir o gás hidrogênio? Há vários métodos de produção, entretanto os processos mais usados comercialmente são: reforma a vapor e eletrolisadores. No primeiro caso, o hidrogênio é produzido a partir de combustíveis fósseis por reforma a vapor do metano ou gaseificação do carvão obtendo-se como produto CO2 e H2. Esse método responde por 95% do hidrogênio produzido e consumido no mercado mundial. Esse é chamado o hidrogênio “marrom ou cinza”, devido às emissões significativas de CO2, que chegam a cerca de 870 milhões ton/ano. Além disso, o processo ocorre a altas temperaturas, tornando-o mais caro. Nesse tipo de produção se consome 6% dos combustíveis fósseis e 2% de carvão produzido no mundo [3].
No segundo caso, usando eletrolisadores, a matéria prima básica para a produção do hidrogênio é a água. Um eletrolisador é alimentado por uma fonte de energia elétrica e consiste de uma célula eletroquímica com dois eletrodos, o catodo e o anodo, onde são produzidos os gases hidrogênio (H2) e oxigênio (O2), respectivamente. Esse é o chamado “hidrogênio branco”. Esse método responde por cerca de 4% do hidrogênio consumido no mundo e o maior problema dessa rota é a demanda de energia elétrica necessária nessa reação, cerca de 3.600 THWh para produzir 2,4 milhões toneladas, sendo capaz de consumir toda a energia produzida na Europa para sua produção [4].
Além dessas duas, outra possibilidade, não discutida neste artigo, é a produção do hidrogênio a partir da biomassa, onde se utiliza a fermentação anaeróbia com a possibilidade de utilização de diferentes materiais residuais como substrato, como aqueles provenientes da agroindústria que sejam ricos em carboidratos, lipídios e/ou proteínas. Atualmente, esse método responde por 1% do hidrogênio produzido no mundo. O método tem como principais desvantagens o fato de ser lento e necessitar de grandes superfícies [5]
Então, o desafio é buscar rotas alternativas para a produção de hidrogênio que sejam ambientalmente mais amigáveis e sustentáveis e ao, mesmo tempo, viáveis economicamente de modo a tornar realidade o uso do hidrogênio como combustível. Neste contexto, tem-se desenvolvido nos últimos anos a produção do “hidrogênio verde”, onde a eletricidade usada é gerada a partir de energia nuclear ou fontes renováveis de energia tais como eólica ou solar. A expressiva queda dos custos de geração de energias renováveis e os grandes investimentos em P&D têm contribuído para tornar essa rota viável economicamente.
Há ainda o chamado “hidrogênio azul”, que surgiu mais recentemente e refere-se à produção a partir de metano ou combustíveis fósseis, mas com a captura e estocagem do CO2 para conversão em produtos de maior valor agregado por um processo paralelo [6].
Na Figura 2 são resumidas as diferentes rotas de produção do hidrogênio [1].
Figura 2- Métodos de produção do hidrogênio e sua classificação quanto a sustentabilidade, adaptado de [7].
Pensando no uso do hidrogênio como um combustível considerado limpo, ambientalmente amigável, com alto poder energético, não se pode pensar na sua produção a partir de metano ou combustíveis fósseis por causa dos problemas ambientais já destacados. Assim, para associar hidrogênio à ideia de sustentabilidade é necessário produzir preferencialmente o hidrogênio verde. O desafio é melhorar o processo de eletrólise da água para que a demanda de energia seja menor e possa ser suprida por fontes renováveis como solar ou eólica: desenvolver materiais para os anodos e catodos onde a quebra da ligação da molécula de água com posterior produção de hidrogênio e oxigênio ocorra com maior facilidade (o que demanda menor consumo de energia) e em maior quantidade. Tais materiais são conhecidos, de forma geral, como catalisadores e, neste contexto, como eletrocatalisadores.
Para isso as pesquisas científicas recentes estão voltadas à busca de materiais para o anodo e o catodo que sejam bons eletrocatalisadores, tenham baixo custo, alta estabilidade química e durabilidade, sejam abundantes e não tóxicos [8]. Infelizmente, dentre todos os materiais estudados, o melhor material para essa finalidade isso é a Pt. Entretanto, seu uso é inviável devido ao custo. Por essa razão, materiais alternativos têm sido propostos, tais como: ligas Ni-Mo-Cu, sulfetos e fosfetos, os quais têm apresentado uma boa performance [9, 10].
Como acima, para produzir H2 com emissão zero, tem sido proposta a quebra da ligação da água pela ação da luz solar, neste caso usando fotocatalisadores. São materiais semicondutores que, ao absorverem luz, promovem a formação de elétrons fracamente ligados e com alta mobilidade que podem ser facilmente transferidos para água dos chamados pares elétrons-lacunas na superfície desses semicondutores. Os elétrons promovem a redução da água gerando hidrogênio e as lacunas a oxidação gerando oxigênio. Neste caso há dois sistemas possíveis de serem empregados, onde se usa apenas a luz solar, chamada fotocatálise, ou a luz solar e energia elétrica, chamada fotoeletrocatálise, Figura 3 [11]. Nos dois casos o desafio é a obtenção de semicondutores, uma vez que muitos desses materiais sofrem fotocorrosão, que sua produção tenha baixo custo, possa ser produzido em alta escala e os materiais sejam abundantes e não tóxicos. Outro ponto importante é que esses semicondutores absorvam no visível, onde se tem a maior disponibilidade no espectro solar, tenham baixa taxa de recombinação dos pares elétrons-lacunas, para que as cargas fiquem disponíveis para a reação e apresentem alta eficiência de absorção da luz. No caso dos fotoeletrocatalisadores ainda há a necessidade de que os materiais sejam ativos em baixos potenciais para que o consumo de energia elétrica seja o menor possível. O uso comercial desses dispositivos ainda é muito restrito e se dá em pequena escala.
Figura 3: Representação da produção de hidrogênio em fotoeletrocatalise.
Conclusões
O hidrogênio certamente é uma das fontes de energia mais viável e sustentável e terá um papel de destaque como fonte de energia limpa para suprir as necessidades da humanidade. Para tanto, o desenvolvimento de métodos de produção do “hidrogênio verde” é fundamental. Neste sentido, a síntese de materiais para eletrolisadores e fotoeletrolisadores é um dos aspectos essenciais para o sucesso da utilização do hidrogênio, e as pesquisas em desenvolvimento no mundo buscam alterar a frase “Hidrogênio: o combustível do futuro” para “Hidrogênio: o combustível do presente”.
Ernesto C. Pereira é professor titular do Departamento de Química da UFSCar. Atua no Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (LIEC). Tem doutorado em Ciências – Química pela UFSCar. É diretor de Inovação do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF). Participa como pesquisador no Centro de Inovação em Novas Energias (CINE)
Lucia Helena Mascaro é professora titular do Departamento de Química da UFSCar. Atua no Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (LIEC). Tem doutorado em Ciências – Química pela UFSCar. É diretora de Difusão do Centro de Excelência para Pesquisa em Química Sustentável (CerSusChem). Participa como pesquisadora no Centro de Inovação em Novas Energias (CINE).
Agradecimento
Os autores agradecem o apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo número 2017/11986-5), a Shell e a importância estratégica do apoio da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), por meio do regulamento da Taxa de P&D.
Referências:
[1] https://www.cleantech.com/the-role-of-green-hydrogen-in-global-decarbonization/ consultado em 14/12/2020.
[2] https://www.dainichikikai.co.jp/en/hydrogenenergy/ consultado em 14/12/2020.
[3] Liu, Ke; Song, Chunshan; Subramani, Velu, eds. (2009). Hydrogen and Syngas Production and Purification Technologies.
[4] Sonja van Renssen – Nature Climate Change, 10, 799, 2020.
[5] Lívian R. Vasconcelos de Sá; Magali C. Cammarota; Viridiana S. Ferreira-Leitao – Quimica Nova, 37, 857, 2014.
[6] Lucas van Cappellen, Harry Croezen, Frans Rooijers – Feasibility study into blue hydrogen Technical, economic & sustainability analysis- Delft, CE Delft, July 2018.
[7] https://www.rff.org/publications/issue-briefs/investment-tax-credits-hydrogen-storage/, consultado em 10/12/20.
[8] Ernesto C. Pereira, Angel Cuesta. Journal of Electroanalytical Chemistry, 780, 355, 2016.
[9] Hugo L. Santos, Patricia G. Corradini, Marina Medina, Jefferson A. Dias, Lucia H. Mascaro – ACS Applied Materials & Interfaces, 12, 17492, 2020.
[10] Marina Medina, Patricia G. Corradini, Lucia H. Mascaro – J. Braz. Chem. Soc., 30, 2210, 2019.
[11] Dyovani Coelho, João P.R.S. Gaudêncio, Saulo A. Carminati, Francisco W. Ribeiro, Ana F. Nogueira, Lucia H. Mascaro – Chemical Engineering Journal, 399, 125836, 2020.