A democracia constitucional e sua defesa pelo Supremo Tribunal Federal

Por Laura Segovia Tercic e Adilson Roberto Gonçalves

O STF é rotulado como guardião da Constituição, mas a defesa democrática passa pelo equilíbrio entre todos os poderes

Compete ao Supremo Tribunal Federal (STF), principalmente, a guarda da Constituição. Além dessa função fundamental, cabe a ele julgamentos em última instância e de agentes públicos com foro privilegiado.

Eduardo Luiz Santos Cabette, mestre em direito social com especialização em direito penal e criminologia, é docente do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal. Ele entende que essas funções estão muito bem definidas e a questão é “se o STF se desincumbe bem ou mal delas”. Cabette afirma que “vale dizer que há boas e más atuações desse tribunal: quando faz valer direitos e garantias constitucionais, trabalha bem o STF; entretanto, muitas vezes, inclusive em ativismo judicial que viola a legalidade, e pior, a própria constitucionalidade, transforma-se de guardião em algoz da democracia”.

“A democracia é fruto do reconhecimento de que deve ser construída dia a dia por todas as pessoas individualmente e, ao mesmo tempo, pelas várias instituições governamentais e da sociedade civil”, postula Cabette, sendo veementemente contrário à possibilidade de uma única instituição ou pessoa garantir a democracia – o que seria um indício de autoritarismo ou mesmo totalitarismo.

Posição distinta defende Rubem Barboza Filho, docente da pós-graduação em ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), na medida em que o STF deve zelar pela Constituição e sua aplicação, ele deve ser também o guardião da democracia. Mas as coisas nunca são tão simples. O STF não é apenas um tribunal constitucional, como os que existem nos países europeus ou mesmo nos Estados Unidos. Ele é isso e também o estágio final dos processos legais existentes no país, e que implicam a existência de recursos. Dito de outro modo: o STF tem que lidar com as questões constitucionais de grande alcance e com a pletora de processos comuns de alcance infraconstitucional.

Lorraine Carvalho é supervisora do Núcleo de Atuação Política do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), uma associação sem fins lucrativos, fundada em 1992, para defesa de direitos fundamentais, sobretudo de minorias e grupos sociais marginalizados. Sua criação se deu em resposta ao massacre do Carandiru. Para ela, a democracia é um conceito que “não chegou para algumas pessoas, para alguns grupos e para alguns territórios”. Ela afirma também que, observando a partir do contexto histórico e social do Brasil, “falar de democracia é algo muito vazio”.

“Falar em democracia é entender que existem essas diferenças e discrepâncias no território e tentar, de alguma forma, fomentar o debate para que seja ao menos dialogado e debatido, não havendo pretensão de deixar hegemônico, porque não é, mas reconhecer”, conclui Lorraine.

Protagonismo do STF

O protagonismo do STF está embutido na criação do direito, o que segundo os especialistas, é inevitável. O STF e qualquer outro tribunal “não somente interpreta e aplica o direito posto, mas o cria, na medida em que o adequa ao caso concreto com nuances que não poderiam ser previstas em abstrato pelo legislativo”, diz Cabette, refletindo a opinião do jurista Eros Grau na obra Por que tenho medo dos juízes.

“Infelizmente, temos visto, muitas vezes, o STF tomar decisões apartadas até mesmo do caso concreto em julgamento, em confronto com a Lei e a Constituição, e mesmo cedendo a grupos de pressão, inclusive minoritários”, lamenta Cabette. Segundo ele, “a democracia não é uma ditadura da maioria, mas também não pode ser uma ditadura de minorias barulhentas, que se aproveitam do silêncio ou passividade das maiorias por uma série de fatores”. Assim, o STF deveria se policiar na atividade criativa, cultivando a virtude da mediania, já muito bem destacada desde a Grécia Antiga por Aristóteles, exemplifica Cabette, que é autor do livro Qual democracia, e aponta que “a democracia brasileira conceitualmente é de um modelo representativo, e a grande questão está em saber se esses mandatários eleitos pelo povo realmente exercem seus poderes na medida que lhe foram concedidos pelos mandantes”.

Rubem Barboza, da UFJF, avança nessa avaliação, referindo-se à Constituição de 1988, que estabeleceu termos básicos do regime democrático erguidos após a ditadura militar. Segundo Barboza “a imaginação de futuro da Constituição previa a implantação de uma social democracia, ou seja, um regime que associasse o estado de direito e a representação política própria do liberalismo à busca de justiça social, como na clássica experiência europeia pós Segunda Guerra”. O docente lembra que “os constituintes de 1988 conheciam a história pregressa do país, de desrespeito contínuo às várias constituições que existiram desde 1824, ano de outorga e aprovação da primeira delas”.

Assim, eles estavam convencidos de que a promulgação de uma nova Carta deveria se constituir numa inflexão em relação ao passado. As perguntas que fizeram, segundo Barboza, foram “como elaborar uma Constituição que de fato funcionasse, se não podíamos contar com uma verdadeira tradição democrática de nossas elites políticas, econômicas e culturais, ou com uma cultura cívica presente na prática cotidiana da sociedade? Como finalizar o período ditatorial com uma Constituição que fosse efetiva, e capaz de produzir algo como um ‘patriotismo constitucional’ capaz de, progressivamente, enraizar o regime democrático em nossa vida?”

“A Constituição de 1988 não é fruto de uma conjuntura revolucionária, como a americana”, explica Barboza. “Ela é o resultado de uma luta contínua conduzida por elites políticas contra a ditadura militar ao longo de vinte anos, ou seja, expressa o final de um processo complexo de negociação e de transição para a reorganização do país como democracia”. A nova Constituição deveria criar agentes responsáveis por sua aplicação automática, como o STF e o Ministério Público.

Nesse aspecto, Barboza afirma que existe uma literatura especializada na judicialização da política, ou seja, “um conflito aberto entre o sistema majoritário e o contra-majoritário, do qual faz parte o STF”. Por outro lado, Lorraine entende que expressões como “politização do judiciário” ou “judicialização da política” refletem uma discussão que não se faz necessária. “Justiça é política, política é justiça e sempre foi”, declara.

No papel de guardião da Constituição, o STF acabou por interferir sistematicamente na atividade do sistema majoritário – o Executivo e o Parlamento – em função da própria extensão da Constituição. Barboza destaca que “este desequilíbrio entre os poderes já fora potencialmente estabelecido em 1988 e se acentuou por ocasião do chamado Mensalão e da Lava-Jato”.

O cuidado para garantir direitos, corrigir políticas públicas estatais e decisões parlamentares logo foi ampliado para julgar um sistema de corrupção. “O STF foi arrastado por esta dinâmica de crise, tendo mais se defendido do que atuado como portador de um princípio de autoridade que deve vir antes do poder”, conclui Barboza.

Concluindo, nas palavras de Lorraine, “talvez a visibilidade dessa dinâmica esteja agora escancarada, ou visível para algumas pessoas que antes não enxergariam; porém, para muitos grupos que já são selecionados, e que sabem o que é justiça ou a falta dela, essas expressões sempre ocorreram, sempre foram ferramentas de manutenção de exclusão”.

Laura Segovia Tercic, graduada em biologia (USP) e aluna da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

Adilson Roberto Gonçalves é pesquisador da Unesp na área de Química, com especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.