Coronelismo eletrônico ignora Constituição e distorce a democracia no Brasil

Por Carolina Medeiros e Graziele Souza

O próprio Supremo Tribunal Federal, chamado guardião das normas constitucionais, já confirmou que o artigo 54 proíbe claramente deputados e senadores de serem sócios de pessoas jurídicas titulares de concessão, permissão ou autorização de radiodifusão. Hoje mais de 270 deputados e senadores controlam cerca de 350 emissoras.

No último dia 21 de dezembro, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) com o apoio do Coletivo Brasil de Comunicação Intervozes protocolou uma Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 379) na tentativa de barrar a ADPF 429. Essa ação trata da concessão de outorgas de rádio e televisão para políticos e foi movida no início do mês pelo então presidente da república Michel Temer, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), em uma tentativa de favorecer um grupo de 40 parlamentares concessionários de radiodifusão que têm sido processados em diferentes estados. O objetivo do pedido de Temer é para que o Supremo suspenda e julgue como inconstitucionais as decisões judiciais que contrariam os interesses desses deputados e senadores.

Segundo defendem alguns órgãos do judiciário, pesquisadores e entidades do campo do direito à comunicação, a ação do presidente da república contraria o disposto no artigo 54 da Constituição Federal: deputados e senadores, a partir do momento em que são diplomados, não podem “firmar ou manter contrato” ou “aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado” em empresa concessionária de serviço público. Já a primeira linha do artigo seguinte da Constituição, o de número 55, diz: “Perderá o mandato o deputado ou senador que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior”.

Vale ressaltar ainda que o próprio STF já se pronunciou e confirmou que os artigos 54, I, “a” e 54, II, “a” da Constituição “contêm uma proibição clara que impede deputados e senadores de serem sócios de pessoas jurídicas titulares de concessão, permissão ou autorização de radiodifusão”.

A polêmica em torno do assunto é por conta das inúmeras ilegalidades pelas quais passa o sistema de rádio e televisão do Brasil. Esse sistema vai na contramão do que prega a Constituição Brasileira, gerando assim diversos problemas para a liberdade de imprensa do país. Entre as principais irregularidades está a frouxa fiscalização por parte do governo federal que resulta no surgimento de oligopólios e em uma situação de pouca diversidade de vozes e ideias, danosa à democracia e à representação dos diversos grupos que compõem a sociedade, conforme aponta a ONG Repórter Sem Fronteiras.

A Constituição prevê ainda que cabe as concessões cabem ao Ministério das Comunicações, isso porque existe um limite físico para a existência de emissoras de rádio e televisão que depende diretamente do espectro de faixas de frequência. Para deter a posse de uma emissora de rádio ou televisão é necessário passar por um processo licitatório e cumprir uma série de regras e assim garantir a pluralidade e a diversidade de informação para a sociedade brasileira. A ONG alerta ainda, em um relatório de 2013, que como tanto o processo licitatório quanto o direito de concessão é sempre realizado pelo Ministério das Comunicações, as minorias ficam sem representação nas telas nacionais.

Outro problema das concessões a políticos é apontado por Wagner Romão, doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo e professor do Departamento de Política da Unicamp: o conteúdo veiculado ou transmitido, seja na televisão ou no rádio. “Há muitas formas de se estabelecer essa influência política, essa influência de determinado partido ou de uma determinada liderança política para aquilo que é veiculado nos meios de comunicação ou para aquilo que não é veiculado. Então, esse é um grande problema da nossa democracia e do modo em que são estabelecidos os editais, as divisões sobre verbas publicitárias”, argumenta. Para o professor há ainda outro problema: o controle sobre o quanto o poder público gasta com publicidade nas emissoras.

Já para Marcel Cheida, jornalista e professor de ética jornalística na PUC-Campinas, o malefício da tradicional política de concessão de emissoras de rádio e televisão tem origem histórica na relação cartorial entre governo e apoiadores.  Ele defende ainda que quem tem uma concessão tem o poder amplificado de persuasão político-eleitoral, o que desequilibra significativamente as disputas por cargos governamentais. “O controle das emissoras dá um poder muito maior ao parlamentar para negociar interesses privados com o governo de plantão. Ou seja, o sistema cartorial e de apadrinhamento é pernicioso à democracia, pois contribui para manter um controle elitizado do sistema nas mãos do coronelismo eletrônico”, aponta.

Vale destacar ainda que se trata de um problema de origem política e ética; uma vez que a programação e os conteúdos dessas emissoras resultam da visão ideológica e partidária dos proprietários, e não do livre debate e das demandas de segmentos da sociedade. “Na dimensão política, esse sistema é a negação da cidadania, pois é impermeável ao modelo democrático ou republicano; as emissoras são ferramentas de controle social, eleitoral e partidário. Na dimensão ética, os profissionais, geralmente, são submetidos à censura e com ela convivem para assegurar a sobrevivência, o emprego; assim, deixam o senso crítico, a independência e a isenção no esquecimento”, defende Cheida.

Logo, se formos pensar pelo lado de como deveria ser o processo de concessão, as emissoras deveriam dispor de um conselho eleito pela sociedade e de um estatuto de autonomia e independência para elaborar a programação e veicular os conteúdos. E assim, então, prestar um serviço público, educativo e cidadão. Mas não é o que ocorre.

Histórico das concessões
Entre os anos de 1985-1988 foi ampla a distribuição de outorgas de radiodifusão a parlamentares constituintes. Nesse período as concessões foram ostensivamente usadas como moeda política, dando origem a um dos processos mais antidemocráticos da Constituinte. Em troca de votos a favor do mandato de cinco anos para presidente, foram negociadas 418 novas concessões de rádio e televisão, sendo que 40% de todas as concessões feitas até o final de 1993 estavam nas mãos de prefeitos, governadores e ex-parlamentares ou seus parentes.

Ao longo dos anos, a prática se tornou mais sutil: durante o governo de Fernando Henrique Cardoso foram distribuídas ao menos 23 outorgas para políticos, enquanto o governo de Luiz Inácio Lula da Silva concedeu, até agosto de 2006, pelo menos sete canais de televisão e 27 outorgas de rádio a fundações ligadas a políticos. Entre os anos de 2007 a 2010, 68 congressistas eram ligados a pessoas jurídicas concessionárias de radiodifusão, enquanto no período de 2011 a 2014, 52 deputados federais e 18 senadores eram sócios ou associados de concessionária.

Segundo dados do projeto “Excelências”, vinculado à Transparência Brasil, entre 2015 e 2019 o Brasil terá 43 deputados em exercício com concessão de serviços de rádio ou televisão, totalizando 8,4% do total dos membros da Câmara dos Deputados. Por sua vez, o Senado Federal é proporcionalmente ainda mais marcado por esse fenômeno, já que 19 senadores são concessionários, atingindo a marca de 23,5% dos membros da casa. Ou seja, de 594 parlamentares eleitos, 63 são outorgados de meios de comunicação, atingindo a marca de mais de 10% do Congresso Nacional.

A situação de domínio político sobre os meios de comunicação expõe um grave conflito de interesses, uma vez que o próprio Congresso Nacional é responsável pela apreciação dos atos de outorga e renovação de concessões e permissões de radiodifusão. Hoje os dados disponíveis no site do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações são antigos, mas apontam a existência de quase 10 mil concessionários de rádio e televisão, além de 4.300 outorgas de emissoras de rádio comunitárias. Os mais de 270 deputados e senadores controlam cerca de 350 emissoras, distribuídas por todos os estados brasileiros.

Carolina Medeiros é jornalista formada pela PUC-Campinas com Especialização em Jornalismo Científico pelo Labjor/Unicamp. Atualmente faz Mestrado em Divulgação Científica e Cultural, também no Labjor, com o projeto de pesquisa “As estratégias de comunicação das revistas The New England Journal of Medicine e The Lancet para além dos especialistas” e atua com desenvolvimento de projetos científicos na área da saúde.

Graziele Souza é graduanda do 5º período de jornalismo pela PUC-Campinas e estagiária de jornalismo no Labjor/Unicamp.