Por Caren Ruotti
Com a consolidação do PCC (marcado por disputas externas e internas), há progressivamente a instauração de um novo equilíbrio de poder. Esse processo teve como consequência alterações nas formas de gerir as condutas da população carcerária, notadamente pela instituição de um ordenamento específico, com interdições, previsão de punições, mecanismos de diferenciações e exclusões entre os presos.
Observa-se paulatinamente um deslocamento nos mecanismos de resolução de conflitos, não mais instituídos de maneira individualizada ou localizada em decisões pessoalizadas do PCC, mas estabelecida de modo coletivo. Assim, a resolução dos litígios transforma-se em prerrogativa dos membros da organização através do funcionamento dos “debates” ou “tribunais do crime”. Tudo isso gestado às margens do Estado, que tem transferido aos próprios presos a função de gerenciar o cotidiano prisional.
No Brasil, as mudanças no padrão de criminalidade e seus efeitos nas experiências da população têm se constituído em problemática central nos estudos sobre a violência e uma preocupação constante na vida diária, sobretudo nos centros urbanos (Adorno, 1996). Dentre essas transformações destacam-se o surgimento e o fortalecimento de diferentes grupos de caráter mais “organizado” ou “articulado”[¹], com bases internacionais, voltados para atividades criminais, especialmente em torno do tráfico de drogas e armas, mas também dedicado a roubos de cargas, assaltos a empresas de transporte de valores e prédios de luxo, entre outros. Grupos que foram conformados, em grande parte, no interior do sistema prisional e que vêm adquirindo forte territorialização em “áreas periféricas” ou “favelas” de diferentes localidades do país, apresentando grande potencial no uso da força física (Misse, 1999; Zaluar, 2004; Dias, 2013).
Além de caracterizar-se por essa possibilidade de emprego excessivo da violência, mediante o uso de armas de fogo, essa “articulação” criminal tem envolvido a corrupção dos agentes públicos e provocado desarranjos acentuados no tecido social, como a ocorrência de homicídios (Adorno, 1996; Misse, 1999; Zaluar, 2004). Diferentes autores vêm indicando que a exacerbação da violência policial, o comprometimento da própria polícia com o crime, assim como as condições precárias e violentas do sistema carcerário estão entre os fatores relacionados com o fortalecimento dessa criminalidade (Peralva, 2000; Dias, 2013).
No estado de São Paulo, a proeminência dessa ação criminal “articulada” tem sido do Primeiro Comando da Capital (PCC), que, formado ainda na década de 1990, no interior do sistema prisional, vem estabelecendo liderança nos negócios criminais e no controle de condutas, tanto dentro das prisões como extramuros.
É nesse contexto que este artigo se insere, procurando problematizar os contornos específicos que o uso da força física e sua gestão apresentam sob essa nova configuração criminal, tanto no interior das práticas dos grupos sob a normatividade do PCC, como em seu contraponto e conexão com a atuação do Estado. De tal maneira, objetiva-se evidenciar tanto as práticas de controle social (e punição) fora da legalidade estabelecidos por esses grupos em áreas do município de São Paulo, como as ações violentas das forças policiais, justificadas em nome do combate a essa criminalidade. O aspecto central que sobrevêm dessa discussão é a produção de uma complexa rede de relações constituídas no limiar entre a vida e a morte.
Controle social e punição: os “debates” ou “tribunais do crime”
Para além das atividades criminais, o PCC tem instituído mecanismos de controle social não só no interior das prisões, mas igualmente nos bairros onde tem conseguido forte presença territorial (Feltran, 2008, 2010; Telles e Hirata, 2010; Dias, 2013).
Como salienta Dias (2013), antes da formação do PCC, predominava nos presídios paulistas uma situação de descentralização do poder, sendo os confrontos físicos e derramamentos de sangue constantes. Com a constituição e consolidação desse grupo (marcado por disputas externas e internas), há progressivamente a instauração de um novo equilíbrio de poder, caracterizado pela sua hegemonia atual em grande parte do sistema prisional do estado. Esse processo teve como consequência alterações nas formas de gerir as condutas da população carcerária, notadamente pela instituição de um ordenamento específico, com interdições, previsão de punições, mecanismos de diferenciações e exclusões entre os presos.
Ademais, observa-se paulatinamente um deslocamento nos mecanismos de resolução de conflitos, não mais instituídos de maneira individualizada ou localizada em decisões pessoalizadas do PCC, mas estabelecida de modo coletivo. Assim, a resolução dos litígios transforma-se em prerrogativa dos membros da organização através do funcionamento dos “debates” ou “tribunais do crime”. Tudo isso gestado às margens do Estado, que tem transferido aos próprios presos a função de gerenciar o cotidiano prisional (Dias, 2017). Margens que não significam mera ausência, mas sim formas de interdependência, relações de poder específicas, linhas de tensão e ressignificações entre o legal e o ilegal (Das e Poole, 2008; Dias, 2017).
A capilaridade (e retroalimentação) entre o dentro e fora das prisões têm se revelado na consolidação do poder do PCC e suas prerrogativas para além dos muros do sistema prisional (Teixeira, 2012; Godói, 2015), tanto no estabelecimento de suas práticas criminais como de seus mecanismos de controle social, o que inclui punições diversas, como a morte (Feltran, 2010; Ruotti, 2016). Logo, essa conexão traz efeitos diretos para as comunidades onde os grupos sob a normatividade do PCC se territorializam, especialmente no que diz respeito ao uso da força física (e seu controle). Em última instância, o que se identifica é a constituição de um poder não estatal que vem advogando para si o arbítrio sobre a vida e a morte dos moradores dessas comunidades (envolvidos ou não em práticas criminais), através do funcionamento dos referidos “debates” ou “tribunais”.
Em pesquisa desenvolvida, pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, em dois distritos do município de São Paulo, Cidade Tiradentes e Jardim Ângela [²], historicamente caracterizados pela grave situação de violência, notadamente pela ocorrência de homicídios, pôde-se verificar os efeitos dessa presença. Conforme os relatos dos moradores e profissionais, estariam vigentes nessas áreas, a partir da maior “organização” do crime, interditos como o de “não poder matar sem permissão” ou “não poder roubar na comunidade” (com as consequentes punições nos casos de não cumprimento).
Por um lado, essa regulação acaba por ser um fator positivado em algumas narrativas, já que teria contribuído para a própria diminuição dos assassinatos[³]. Por outro, contudo, identifica-se os sentimentos de insegurança, medo e desconfiança que a atuação desses grupos provoca no cotidiano desses territórios, ao regular a entrada e saída em determinadas áreas, ao arbitrar desavenças próprias do mundo do crime ou mesmo conflitos interpessoais da população, como traições amorosas e violências domésticas.
Em muitas situações a população é “orientada” (ou coagida) a não acionar a polícia e sim, pelo contrário, chamar os próprios membros desses grupos para resolver algum tipo de conflito. Esses grupos buscam, de tal modo, principalmente evitar que algo atrapalhe seus negócios criminais. Distintos relatos indicam ainda a aplicação de penas severas, que vão desde humilhações até a morte, inclusive nos casos de estupro (Ruotti, 2016).
Atuação policial: as mortes “justificadas” em nome do combate à criminalidade
“Com marginal não se negocia, bandido é bandido, Estado é Estado; e bandido, se vai para confronto, morre mesmo”[⁴].
A citação acima é do comandante geral da Polícia Militar, pronunciada em resposta ao evento que ficou conhecido como “ataques de 2006” ou “crimes de maio”, no estado de São Paulo. De forma abreviada, é possível mencionar que esses ataques, provocados pelo PCC, e a consequente reação do Estado, explicitaram, de maneira violenta, a tensão latente entre as forças de segurança oficiais e esse agrupamento. Ademais, mostraram a força de conexão que o PCC conseguiu lograr entre o intra e extramuros das prisões, assim como a fragilidade do monopólio estatal da violência no país. A fala do comandante demonstra essa fragilidade, embora proferida com a intenção de afirmar a força do Estado na manutenção da ordem social, ainda que por meio da violência.
Longe de ser uma exceção, essa narrativa sintetiza, de maneira emblemática, as orientações e padrões de ação estatais ainda vigentes no país, em pleno confronto com uma política de consolidação de um estado de direito democrático. O que se vê, nesse sentido, é uma política de combate à criminalidade altamente letal, a qual é justificada em nome da promoção da própria segurança pública, especialmente em momentos de “crise”, como no episódio mencionado. Como indica Misse (2010), sempre houve no país uma ambientação social para justificativas oficiais de eliminação física de supostos criminosos, as quais são constantemente reatualizadas. Não foi diferente nessa ocasião, quando a polícia foi responsável por um número excessivo de mortes, em uma espécie de “revanche” às rebeliões e ataques perpetrados pelo PCC (Cano e Alvadia, 2008; Adorno e Dias, 2016).
Dessa forma, evidencia-se os limites que o Estado apresenta em estabelecer o monopólio legítimo do uso da força física. Mais especificamente, isso ocorre em diferentes sentidos: i) quando o Estado não consegue conter o espraiamento desse agrupamento (e, pelo contrário, favorece sua composição, inclusive diante da situação precária das prisões); ii) quando os grupos criminais “organizados” ou “articulados”, no caso o PCC, tomam para si a função de regular comportamentos e aplicar sanções, inclusive por meio do uso da força; ou ainda, iii) quando o próprio Estado, por meio de suas polícias, age de forma violenta e arbitrária, fora dos padrões legais instituídos, sobretudo sob a alegação do combate à criminalidade.
Como aponta Adorno (2002), a constituição desse monopólio não significa que qualquer violência possa ser justificada em nome do Estado. Entretanto, o que se identifica é que as próprias instituições oficiais, inclusive do sistema de justiça criminal, por vezes, terminam justificando e requerendo estatuto de legalidade para tais ações.
Considerações finais
Pelo exposto, é possível observar algumas das conexões entre as práticas de controle social e violência produzidas por essas duas instâncias de poder. Ou seja, de um lado, o PCC, um agrupamento já em princípio ilegal, que têm instituído mecanismos de punição, incluindo a morte, no arbítrio de conflitos internos e externos à criminalidade, perfazendo, ademais, relações de tensão e interdependência com as forças oficiais. E, de outro, o Estado (representado por suas polícias), que acaba por perpetrar ações que poderiam ser consideradas ilegais e violentas, mas que, não obstante, são justificadas em nome da ordem social e controle do crime. Ambas demonstram a fragilidade da vida perante seus mecanismos de punição, ao advogarem para si o “direito” de matar, ativando processos de justificação de seus poderes (ainda que ilegais), no intuito de decidir aqueles para os quais a morte possa ser plausível e aceitável.
Caren Ruotti é pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Doutora pelo Programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Notas
[¹] O uso desses termos entre aspas objetiva assinalar para as discordâncias e desafios que esse fenômeno comporta para seu delineamento conceitual e jurídico, assim como para os efeitos sociais que essa conceituação pode produzir a depender de sua utilização. Assim, a terminologia “criminalidade organizada” ou “crime organizado” pode nublar um entendimento sobre a diversidade de atores e práticas que se agregam sob essa terminologia, bem como pode ser utilizado politicamente para criminalizar alguns grupos em detrimento de outros (Misse, 2007; Biondi, 2010; Teixeira, 2012).
[²] Pesquisa intitulada “Análise da queda nas taxas de mortalidade por homicídio no município de São Paulo 2000-2008”, financiada pela Fapesp: Programa Cepid-Fapesp I (2001-2012), processo n.98/14262-5.
[³] No município de São Paulo, observa-se uma queda de mais de 70% nas taxas de homicídios, entre 2001 e 2008 (Peres et al., 2011), sendo que a influência do PCC tem sido apontada dentre os fatores explicativos (Feltran, 2012).
[⁴] “Bancos são novo alvo do PCC, diz polícia”. Folha de S. Paulo, 15 de maio de 2006. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1505200602.htm. Acesso em: 03 de out. 2017.
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