Por Bianca Bosso e Ludimila Honorato
Luto, estresse e sobrecarga de trabalho afetam a saúde de médicos, enfermeiros e agentes sepultadores; apoio às classes é deficitário
Seja pela perda de alguém conhecido ou pelos dados divulgados na mídia, a pandemia de covid-19 fez o contato com a morte tornar-se mais intenso no dia a dia. Para algumas classes de profissionais, como médicos, enfermeiros e pessoas que atuam em necrotérios e cemitérios, essa realidade é comum não só durante grandes tragédias mundiais. A exposição contínua a esse cenário estressante pode desencadear transtornos físicos e mentais, além de prejudicar as relações sociais e o desempenho no trabalho.
Para que esses profissionais consigam manter a saúde em dia e cumprir as atividades do cotidiano, é preciso criar e aplicar estratégias para equilibrar a técnica com a sensibilidade necessária. Se antes a rotina nas clínicas e hospitais já era repleta de tensão, a emergência na saúde pública tornou tudo mais intenso: o fluxo de atendimentos, os cuidados consigo e com o outro, o número de mortos a cada dia.
No ápice da crise, eram frequentes os relatos de esgotamento acompanhados do discurso de que era preciso continuar. Com o tempo, as consequências desses esforços chegaram: no estado de São Paulo, um a cada sete médicos que atuaram na linha de frente da pandemia foram acometidos pela síndrome de burnout, condição relacionada ao estresse crônico no ambiente de trabalho.
Esses dados são fruto de uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que investigou a saúde mental dos profissionais da capital e do interior. O estudo foi feito a partir de um questionário baseado em uma escala validada para medir o estresse laboral. Dos 301 entrevistados, 45 relataram nível elevado de pelo menos duas características da síndrome: exaustão emocional, cinismo, sensação de ineficácia e falta de realização. Ainda segundo o artigo, os dois primeiros fatores estavam mais presentes “em médicos que tinham menos experiência profissional e trabalham em atenção primária”. Já a sensação de ineficácia foi prevalente nos que atuavam no serviço de emergência.
A psicóloga Simony de Sousa Faria, professora do curso de Psicologia da Universidade Ceuma, no Maranhão, explica que a falta de preparo emocional é o que mais influencia no comprometimento da saúde desse público. Segundo ela, que acompanha pacientes em cuidados paliativos e profissionais que lidam com a morte no ambiente hospitalar, há um forte sentimento de impotência entre as pessoas que atuam na área.
“Nós vemos uma vulnerabilidade sentimental nos profissionais. Por mais que eles trabalhem com a morte, às vezes falta capital emocional para lidar com essas situações”, diz Faria. Os desgastes que se iniciam na mente também têm reverberações físicas, conhecidas como reações psicossomáticas. “A síndrome de burnout ocasiona alguns sintomas físicos e psicológicos, desde depressão e ansiedade até questões intestinais como diarreia, prisão de ventre e febres emocionais. Existem pessoas que começam a perder o cabelo, porque cai a imunidade, tudo isso por conta de fatores estressantes”, completa.
Faria também se dedicou a compreender os aspectos emocionais envolvidos a partir da morte e dos lutos em uma pesquisa publicada em 2017 no periódico brasileiro Psicologia Hospitalar. No estudo, a psicóloga observa que o objetivo desses profissionais, de salvar vidas e evitar a morte a qualquer custo, conflita com as vivências do morrer. Assim, o trabalho gera desgaste emocional, sentimentos de fracasso e frustração.
Negar para sobreviver
Com ou sem recursos externos, os próprios profissionais encontram meios para amenizar o impacto de encarar a morte com frequência. Porém, muitas vezes acabam deixando de lado ações importantes para lidar com esses sentimentos de forma saudável. “A maioria dos profissionais de saúde não busca atendimento. Às vezes, não percebem processos psicopatológicos. Se outra pessoa da equipe de saúde não alertar, eles não procuram ajuda”, observa a psicóloga Simony de Sousa Faria.
Dorisdaia Humerez, coordenadora da Comissão Nacional de Saúde Mental do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), também chegou a uma conclusão semelhante quando aplicou um questionário para um grupo de dez enfermeiros estudantes de pós-graduação que trabalhavam na UTI de pronto-socorro. “Perguntei o que era morte, como era o mecanismo de defesa e, para eles, parecia que não tinha gente ali. Falavam de sintomas e não demonstravam que tinham cuidado de uma pessoa”, relata. “A última pergunta que fiz era se queriam fazer um grupo para falar da morte e os dez disseram não. Falar da morte, para eles, é muito complicado. Acredito que usam o mecanismo de negação e tratam o paciente como ‘o 203 solicitou isso’, meio que como objeto”.
Essa negação alimenta um ciclo doentio que leva novamente a transtornos mentais que reverberam no físico. No fundo, há uma justificativa. “Eles negam para sobreviver”, resume a coordenadora do Cofen. Faria acrescenta que, apesar de os profissionais encararem o ambiente de trabalho de uma forma técnica, a relação entre a equipe de saúde e os pacientes não deixa de lado fatores emocionais em ambas as partes.
A psicóloga salienta que o equilíbrio é fundamental para que o profissional preserve sua saúde e as funções no cuidado com o paciente. Caso contrário, pode se importar tanto a ponto de se debilitar ou chegar a um momento em que robotiza a relação médico-paciente. Essa robotização é chamada pelos especialistas de dessensibilização e se trata de um processo de redução da empatia com o outro diante de uma situação específica – no caso, a morte.
No ambiente hospitalar, esse processo pode dificultar a relação do paciente com o profissional e colocar o especialista em uma posição não-humana. “Se ele exerce o cuidado técnico com maestria, ele pode não estar exercendo o cuidado humano com maestria”, comenta. Ela afirma, ainda, que a dessensibilização pode surgir como consequência do próprio trauma emocional de enfrentar a morte cotidianamente. “Esse trauma pode ir se enraizando, se cristalizando por falta de cuidado”.
A importância do coping
Não se trata, no entanto, apenas de questões psicoemocionais do profissional, mas também de fatores relativos ao ambiente onde ele está inserido. Faria cita o caso de um médico que tentou salvar a vida de um paciente e o desfibrilador não funcionou. “A falta de condição técnica, de recurso, dentro do hospital, também pode favorecer essa dessensibilização”, diz.
Para enfrentar esse cenário, há o processo de coping, um conjunto de técnicas que visam encontrar meios para lidar com a situação no longo prazo. “O coping é um ajustamento, como se fosse o processo de resiliência em que eu vou tentar encontrar caminhos para viver melhor. Mas só quem sabe disso é a própria pessoa, só ela pode determinar o quão pesado é estar nesse lugar. O coping seriam estratégias de enfrentamento para essas condições de sobrecarga psíquica e física”, explica Faria.
Os cuidados psicológicos podem ser importantes não somente para evitar a robotização, mas treinar o profissional a usar esse recurso a seu favor. “Dizer que eles não podem sentir, não podem chorar, não existe. Eu preciso também sentir, mas não posso esquecer que ali eu estou como profissional e não como familiar do outro”, comenta Simony Faria. Nesse sentido, a dessensibilização, quando aplicada corretamente, pode acabar funcionando como um amortecedor que alivia a pressão da rotina de mortes diárias.
Serviço de apoio
Dorisdaia Humerez comenta que, antes mesmo da pandemia, já era sabido que os enfermeiros têm uma carga de sofrimento muito grande. Quando a pandemia chegou, viu-se a necessidade de criar uma plataforma de atendimento a esses profissionais que estavam na linha de frente.
Entre março e setembro de 2020, o projeto Enfermagem Solidária contou com cerca de 170 enfermeiros voluntários, especialistas em saúde mental, para atender os colegas de profissão 24 horas por dia, sete dias por semana. Foi o primeiro serviço de acolhimento do tipo lançado pelo Conselho. “Os sentimentos deles foram mudando. No começo, tinham medo de se contaminar. Depois, a queixa era a falta de EPI (equipamento de proteção individual). Chegou outra fase de não saber usar EPI porque ninguém ensinou. Depois, era a questão de não poder se trocar, porque trabalhavam 12 horas e só podiam sair uma vez. Dentro da UTI, não conseguiam se comunicar um com o outro, tomando pouco líquido, suando. Então, passou disso para problemas com a família, pois queriam ficar longe para não contaminar”, lista Humerez.
Naquele período, a plataforma fez quase 5 mil atendimentos, com uma média de 4,2 mil acessos por mês. O serviço foi encerrado em setembro, mas reaberto no começo de 2021 quando Manaus enfrentava a falta de oxigênio nos hospitais. O acolhimento foi novamente interrompido no fim do ano passado e reaberto ocasionalmente quando as chuvas devastaram cidades da Bahia e em Petrópolis neste ano.
Com o projeto atualmente em pausa, a coordenadora afirma que agora há a “intenção de fazer um atendimento pontual, não mais 24 horas, porque não há fôlego e plantonistas para isso”. Em paralelo, alguns conselhos regionais de enfermagem, como os de São Paulo e Minas Gerais, iniciaram atendimentos por conta própria. “Estamos tentando tirar do Conselho Federal, para sermos só a ponte de ligação, treinar o pessoal e fazer acompanhamento”. Nesse caso, a proposta é fornecer um serviço constante.
Ausência de acolhimento
Durante a pandemia, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que obrigava estabelecimentos funerários e de sepultamento a fornecer aos agentes itens de higiene e EPIs. Uma das emendas estabelecia, ainda, que o fornecimento desses equipamentos deveria se tornar prática cotidiana.
João Batista Gomes, secretário de políticas sociais do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep-SP), conta que essa aprovação não trouxe mudanças expressivas, já que, desde 2014, o fornecimento de equipamentos já havia se tornado obrigatório por força de uma recomendação do Ministério Público do Trabalho (MPT).
“No serviço funerário municipal, a entrega de EPIs já acontecia de forma muito irregular”, diz Gomes. “Com o advento da pandemia, o Sindsep levantou o lema ‘se não tiver EPI, não há enterro’ e mantivemos as visitas aos cemitérios levantando essa bandeira, o que obrigou a administração a comprar macacões, luvas, máscaras e álcool gel de forma emergencial e foi garantido o fornecimento regular dos equipamentos”. O próprio sindicato faz campanhas e entrou com representações junto ao MPT para garantir a segurança física dos trabalhadores.
No aspecto de saúde mental, a situação preocupa mais. “O serviço funerário não tem um departamento que cuide da saúde psicológica dos profissionais, há apenas um convênio de parceria com uma universidade, que fornece estudantes para fazer atendimentos aos trabalhadores”, explica Gomes. Ele aponta que na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad, houve palestras esporádicas para falar com esses profissionais especificamente sobre lidar cotidianamente com a morte, mas nada permanente.
Bianca Bosso é formada em ciências biológicas e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)
Ludimila Honorato é jornalista e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)