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Artigo
Uma aventura científica no Brasil: Theodoro Peckolt
Por Nadja Paraense dos Santos
10/06/2006

Em novembro de 1847 desembarca no Rio de Janeiro um jovem naturalista e farmacêutico alemão, Theodoro Peckolt (1822-1912). Veio ao Brasil, influenciado pelos cientistas August Wilhelm Eichler e Karl Friedrich von Martius, com a finalidade de estudar a flora tropical e remeter o material colecionado para complementar a monumental obra Flora Brasiliensis (1840-1906). Peckolt não retornou à sua terra natal e permaneceu no Brasil os restantes 65 anos de sua vida, legando-nos uma obra de cento e setenta publicações, entre artigos em periódicos e livros, com dados de suas análises de cerca de duas mil plantas, em sua maioria pertencentes ao domínio da Mata Atlântica.


Retrato de Theodoro Peckolt

O impacto que a flora brasileira causou ao jovem cientista, ele mesmo nos deixou em relato de 1871:

“Não é agora a ocasião de descrever a impressão que experimentei no ano de 1847 ao entrar na magnífica baía do Rio de Janeiro (sic); o aspecto da vegetação tropical produziu-me uma sensação que desisto de descrever”.

Sua contribuição ao desenvolvimento da farmacognosia e da fitoquímica é imensa e ainda hoje suas obras são utilizadas como referências em publicações sobre fitoquímica, química dos produtos naturais e farmacologia.

Após um curto período de permanência na cidade do Rio de Janeiro, trabalhando numa farmácia, Peckolt aprimora o seu conhecimento da língua portuguesa, que havia aprendido através de um pequeno dicionário, e junta o dinheiro necessário para comprar um animal de sela e fazer arranjos de viagem para fora da Corte. Parte em setembro de 1848, percorrendo as províncias do Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, estudando-lhes a flora. No início de 1850, passou algum tempo com os índios botocudos do Rio Doce, realizando excursões através da Serra dos Órgãos e pelo vale do rio Paraíba. Ao retornar ao Rio, em julho de 1851, foi aprovado no exame farmacêutico da Escola de Medicina do Rio de Janeiro.

Peckolt irá estabelecer-se na cidade de Cantagalo, onde viveu durante 17 anos. Nesse período adquiriu profundo conhecimento da flora local, montando em sua farmácia um laboratório e um herbário onde realizou cerca de quinhentas análises quantitativas de extratos de plantas da flora brasileira. Destas, 437 foram publicadas em revistas internacionais, principalmente alemãs, entre 1850 e 1868. Apesar de já ser reconhecido no exterior pela qualidade de seu trabalho, o que pode ser constatado pelo grande número de honrarias acadêmicas estrangeiras que recebeu nesse período, no Brasil, sua produção só teria visibilidade após sua participação na Exposição Nacional do Rio de Janeiro (1861) e o envio de sua coleção de farmacognosia, com cerca de 220 produtos, para a Exposição Universal de Londres (1862), onde recebeu a medalha de ouro na classe de substâncias e produtos químicos e processos farmacêuticos.

Ao retornar ao Rio de Janeiro, irá estabelecer-se com a Pharmácia Imperial, na rua da Quitanda, conhecida também como Drogaria e Laboratorio de Productos Chimicos e Pharmaceuticos de T. Peckolt & cia, onde comercializava alguns dos produtos apresentados nas exposições nacionais (1861, 1866) e universais (1862, 1867): pós de doliarina, preparação de leite da gameleira, agoniadina fluida, extratos de caroba, salsaparrilha e japecanga. Nesse laboratório Peckolt continuou a analisar as nossas plantas, montando em sua residência, no bairro da Tijuca, um herbário. Ele estudou plantas brasileiras de diversas famílias, observando as condições nas quais vivem e se multiplicam, e recolheu dos nativos informações sobre nomes triviais, usos e propriedades farmacêuticas. O herbário fornecia-lhe os meios para a comparação morfológica das numerosas espécies e, no laboratório, Peckolt aprofundava o trabalho, obtendo informações detalhadas sobre a composição química das plantas medicinais, seus alcalóides e outras substâncias de extração.


Anúncio da farmácia de Peckolt

Durante um curto período, de abril de 1874 a janeiro de 1876, foi contratado por Ladislau de Souza Mello e Netto, então diretor do Museu Nacional, para organizar a seção de química analítica, sendo responsável pelo laboratório químico. Podemos inferir que sua curta permanência à frente desse Laboratório deve-se ao fato que as funções que deveria exercer não se enquadravam em seu perfil de pesquisador, especialista nos estudos fitoquímicos de plantas brasileiras.

A contribuição de Theodoro Peckolt para a Flora Brasiliensis de Von Martius foi vultuosa, distinguindo-o este cientista com a máxima confiança. Sua colaboração não se limitou ao fornecimento de materiais: Von Martius e seus colaboradores enviavam-lhe as provas tipográficas de textos para que fossem comentados e corrigidos.

Inegavelmente, é de Theodoro Peckolt o recorde brasileiro de análises químicas das plantas da flora nacional do século XIX e acreditamos que essa marca permaneça imbatível ainda hoje. As publicações internacionais surgem no período entre 1859 e 1911. As primeiras obras em português foram as explicações que acompanhavam as coleções enviadas às exposições nacionais. Os estudos entre 1859 a 1899 compreendem as espécies da flora brasileira de maior interesse na Europa. A partir de 1899, o estudo de plantas medicinais brasileiras tornou-se a tônica de sua obra publicada fora do país. Em nossas pesquisas conseguimos localizar 170 publicações entre artigos e livros. Destacam-se entre as suas obras: Análises da matéria médica brasileira (1868), História das plantas alimentares e de gozo do Brasil, cinco fascículos (1871 a 1884) e a História das plantas medicinais e úteis do Brasil, em oito fascículos, escrita em colaboração com seu filho, também farmacêutico, Gustavo Peckolt. Este trabalho contém a classificação botânica e descreve, por exemplo, as técnicas de cultura, as partes próprias para uso, a composição química, o emprego em diversas moléstias, as doses e os usos industriais.

Em suas obras Peckolt fez anotações importantes sobre diversos assuntos: geografia, topografia, geologia, hidrografia, clima e solos dos estados brasileiros. Ele considerava o homem como o agente mais perigoso do grupo dos modificadores dos terrenos e já previa, assim como outros naturalistas brasileiros da época, a futura necessidade de recuperação do solo destruído pela prática das queimadas. Outra situação analisada quimicamente por Peckolt e que, ainda hoje, permanece bastante atual são os efeitos das queimadas no ar que respiramos e o conseqüente aumento da temperatura.

É singular que os resultados obtidos por esse incansável cientista tivessem sido tão pouco conhecidos e apreciados no país que ele considerava como sua segunda pátria.

Ainda hoje no Brasil são raros os trabalhos de pesquisa associando antropologia e farmacologia. O descaso brasileiro abre caminho para a biopirataria, o roubo de plantas e animais, levando a patentes no exterior de remédios pelos quais os brasileiros terão de pagar caro. Conforme já nos dizia Peckolt em 1888:

“Ao publicarmos o resultado dos nossos estudos, não é nosso intuito apresentar a última palavra sobre tudo o que se refere aos vegetais indígenas e exóticos aclimatados entre nós; mas unicamente fornecer um ponto de partida para trabalhos de maior fôlego, que tenham o poder de significar que os médicos e farmacêuticos brasileiros compreendam que não lhes é lícito conservar-se inativos, concorrendo, assim, para que continuem a ser feitas no estrangeiro a maior parte das investigações sobre a Flora Brasileira.”

Os leitores interessados na documentação usada neste texto devem consultar o meu artigo “Theodoro Peckolt: a produção científica de um pioneiro da fotoquímica no Brasil”, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.12 n.2, p.515-33, mai-ago. 2005.

Nadja Paraense dos Santos é pesquisadora do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro.