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Artigo
O Brasil no olhar de William James
Por Maria Helena Pereira Toledo Machado
10/06/2006
Você sabe onde fica o rio Tapajós? Se não, olhe no mapa. Escrevo para ti sentado numa canoa no dito rio, a cerca de 50 milhas da foz, estando os homens neste momento ocupados em empurrar, contra o vento, o barco para o mais perto possível da margem direita. Agora que a tua pequena mente pode formar a exata idéia do lugar onde estamos, te direi como chegamos até aqui.

(Carta de William James para Alice James. Manaus, 6 de novembro, 1865)

Assim começava uma das muitas cartas escritas no ano de 1865 por William James, que percorria o Brasil como membro da Expedição Thayer. Tendo sido essa uma missiva escrita para Alice, sua irmã mais nova, o tom adotado é sempre de especial carinho e devoção, não economizando, o jovem aventureiro, no uso de expressões hiperbólicas de afeição apaixonada ou no emprego de descrições saborosas do que via e vivia na pele de aventureiro dos trópicos, de forma a cativar a atenção daquela que parecia ser sua leitora predileta. E não lhe faltavam, nessas alturas, assunto com os quais seduzir seus correspondentes “back home”, que recebiam as notícias enviadas por James — de sua saúde, deslocamentos geográficos e atividades — entremeadas por narrativas sedutoras, escritas numa prosa envolvente e permeada por opiniões iconoclastas sobre tudo e todos que o cercavam, inclusive as principais figuras da Expedição Thayer.



William James no decorrer da Expedição Thayer,
convalescendo da varíola

Fotógrafo desconhecido, 1865
(cortesia Houghton Library, Harvard University)

Afinal de contas, explorar os tributários do rio Amazonas em montarias conduzidas por índios e mestiços, coletando espécies de peixes tropicais que tinham que ser ali mesmo embalsamadas, alimentando-se de pirarucu seco, farinha de mandioca e vinho português, não era uma situação corriqueira para nenhum jovem de boa família da Nova Inglaterra. Ao contrário das imagens fixadas para a posteridade pelos seus muitos alunos e milhares de admiradores, como um sujeito atraente e carismático que se vestia de ternos tweed e foulards elegantes, o James que emerge das cartas enviadas do Amazonas é um jovem razoavelmente atlético e extrovertido que se gaba de dormir em rede, nadar em rios selvagens, compartilhar da trabalhosa vida cotidiana de índios “civilizados” e mestiços amazônicos. Além disso, ele confessava num tom às vezes culpado, que sua maior preocupação naquele momento não era estudar, ler ou pensar, mas sim a de manter, o máximo possível, seu pobre corpo a salvo dos ataques de piuns, muriçocas e outros insetos tropicais que à noite começavam a “a cantar como o grande órgão de Boston”, tornando miserável a vida dos viajantes. (Diário de William James, 1865)

O trecho acima citado foi retirado do livro Brazil through the eyes of William James. Letters, diaries, and drawings (1865-1866). Cambridge:MA: David Rockefeller Center for Latin American Studies/Harvard University Press, atualmente no prelo. É este uma edição crítica e bilíngüe (inglês-português), por mim organizada, dos papéis escritos pelo famoso filósofo fundador do pragmatismo, William James, ao tempo de sua estadia no Brasil como membro da Expedição Thayer, expedição esta que foi liderada pelo cientista-naturalista, Louis Agassiz. Contendo igualmente um ensaio analítico a respeito do contexto da expedição e dessa experiência na formação do pensamento jamesiano, além do conjunto de desenhos realizados pelo mesmo James no decorrer da viagem, o livro tem como objetivo proporcionar ao leitor norte-americano e brasileiro um panorama da produção de William James como viajante dos trópicos. O livro, que se apresenta como uma primeira realização de um projeto mais amplo que envolve igualmente a publicação de um livro sobre a Expedição Thayer e a organização de uma exposição e catálogo da ainda inédita Coleção Fotográfica da Expedição Thayer é fruto de um ano e meio de pesquisas desenvolvidas no decorrer da minha estadia como visiting fellow junto ao David Rockefeller Center for Latin American Studies (DRCLAS) da Harvard University (Cambridge, MA, EUA).

Nesse período percorri extensivamente os arquivos e museus da universidade, levantando o conjunto da documentação relativa a essa importante expedição naturalista que viajou pelo Brasil sob a liderança do famoso naturalista Louis Agassiz entre 1865-1866. O material coletado é muito significativo e tem permitido focalizar, sob novo ponto de vista, uma série de questões estratégicas para a compreensão do Brasil na segunda metade do século XIX. Temas tais como os interesses norte-americanos na Amazônia, tanto os ligados a livre navegação, quanto aos projetos norte-americanos de envio da população afro-americana para povoar a Amazônia, a proibição do tráfico internacional de escravos adotada pelo Brasil em 1850, as discussões sobre raça e ciência, são todos temas que atravessaram a viagem de Louis Agassiz e de William James no Brasil e oferecem material para uma reavaliação de muitas questões já consagradas pela historiografia. Assim, acreditamos que Brazil through the eyes of William James permitirá que se aborde esses temas sob uma nova luz.

Embora participante de uma expedição marcada pelos interesses diplomáticos e científicos muito conservadores, William James construiu um ponto de vista sobre o Brasil bastante original, tornando o conjunto de seus registros uma fascinante viagem sobre aspectos inexplorados da sociedade brasileira em meados do século XIX. Durante sua estadia de oito meses no Brasil, William James redigiu um diário pessoal, uma narrativa incompleta de uma expedição de coleta no rio Solimões, e cartas endereçadas a seus pais (Henry James e Mary Walsh James), seu irmão (Henry James) e sua irmã (Alice James). Os papéis brasileiros de James formam um conjunto de grande interesse, tanto para os estudiosos de William James, quanto para os interessados no estudo da literatura de viagem do período, construindo uma narrativa muito pessoal e independente daquela publicada pelo casal Agassiz acerca dessa expedição. Apesar da juventude de seu autor, e de ele se encontrar na expedição numa posição totalmente dependente das ordens e decisões de Agassiz, o enfoque da viagem e da população com a qual ele esteve em contato, composta sobretudo por mestiços da região amazônica, era peculiarmente original. De fato, já nesse período o jovem James mostrava os traços que, mais tarde, foram seguidamente apontados pelos seus biógrafos como fundamentais à sua forma de ver o mundo, quais sejam a empatia e o relativismo.


Menino índio de pé,
Desenho de William James, 1865-1866
(cortesia Houghton Library, Harvard University)

Apesar da fama de seu autor, na verdade os papéis brasileiros de James continuam pouco conhecidos até o momento, com exceção das cartas desse período, endereçadas a seus familiares. A organização dos papéis brasileiros de James como um conjunto pertinente permite a análise dos mesmos em termos da sua contribuição única ao campo da literatura de viagem. Mais especificamente, os papéis de James ainda não foram avaliados em termos de sua inserção no quadro da literatura de viagem a respeito do Brasil, especialmente da Amazônia no século xix, para a qual já se tem estabelecido um rico repertório de relatos de viagem. Finalmente, a passagem de James pelo Brasil é virtualmente desconhecida pelos estudiosos brasileiros, o que torna especialmente pertinente a publicação e tradução dos seus papéis.

Ao apresentar os escritos de William James no Brasil, Brazil through the eyes of William James aborda a história do envolvimento do jovem James na Expedição Thayer, a análise de suas impressões, sentimentos e observações, na figura do coletor voluntário subordinado aos ditames do líder da expedição, localizando toda essa aventura no mapa da vida de James. De fato, em 1865, William James tinha 23 anos e iniciava seu segundo ano de estudos na Escola de Medicina da Universidade de Harvard. Ao tomar conhecimento de que um de seus professores prediletos — Louis Agassiz, então diretor do Museu de Zoologia Comparada — preparava uma viagem de pesquisas ao Brasil, James alistou-se ao projeto, embarcando na qualidade de coletor voluntário, financiando sua participação às próprias custas. Tratava-se, para James, de uma viagem educativa, nos moldes então consagrados para os jovens das elites norte-americanas, ao mesmo tempo em que a oportunidade de ausentar-se do país permitia que ele refletisse sobre suas ambivalências profissionais. Como aluno e assistente de Agassiz, James estava bem a par das discussões que opunham seu mentor a Charles Darwin e seus seguidores, dirigindo suas simpatias muito mais à teoria da evolução do que ao criacionismo defendido pelo primeiro. A estadia brasileira de William James esteve marcada tanto por problemas de saúde — no Rio de Janeiro James contraiu varíola, que o deixou temporariamente cego — quanto por uma postura ambivalente que mais de uma vez o levou a pensar em desistir da viagem. Apesar dos percalços, a viagem de James ao Brasil tem sido discutida por seus biógrafos como ponto decisivo na vida do filósofo do pragmatismo, pois teria sido no decorrer desta que James teria decidido a se dedicar à filosofia.

Em sua estadia no Brasil, James permaneceu principalmente no Rio de Janeiro, Belém, Manaus, e navegou parte do complexo amazônico. Indo contra a corrente do momento, os registros de James sobre o Brasil são peculiarmente empáticos, colidindo com a visão do mentor da viagem, Agassiz, cuja posição política e ideológica o vinculava aos defensores do racismo e das teorias da degeneração pelo hibridismo. Em mais de um sentido, Brazil through the eyes of William James é um projeto ambiciona apresentar uma nova visão de velhas questões. Ao apresentar uma narrativa de viagem de um famoso filósofo da ciência, participando de uma expedição liderada por outro famoso cientista, ambos em posições hierárquicas opostas e exprimindo opiniões contrárias, o livro propõe que se relativize a abrangência das visões preconceituosas dos viajantes estrangeiros no Brasil da segunda metade do século XIX.


Maria Helena Pereira Toledo Machado é professora no Departamento de História da USP.