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O que é filosofar cinematograficamente? Sobre o encontro entre filosofia e cinema
Por Cassiano Terra Rodrigues
11/11/2016

Hoje em dia, o encontro entre a filosofia e o cinema é muito comum. No entanto, esse encontro nem sempre foi fácil e, até hoje, é apenas um encontro pedagógico: os filmes são vistos como um recurso privilegiado para exemplificar noções filosóficas. Ver filmes pode fazer compreender conceitos, determinada noção abstrata pode ser esclarecida pelo confronto entre seu tratamento teórico nos textos filosóficos e seu tratamento cinematográfico. Ora, não é a liberdade uma construção social, não é a luta de classes o motor da história, tal como em Eles não usam black-tie? Não é o tempo o senhor da ordem e da desordem, como em Lavoura arcaica? Não podem os filmes de Eduardo Coutinho prover material para enriquecer o debate sobre o público e o privado, a memória e o atual, o real e o imaginário? E assim como esses, muitos outros temas e filmes poderiam ser citados. Uma bem feita interpretação dos filmes e um bom repertório filosófico podem dar bons frutos, se a estratégia pedagógica for bem preparada. No entanto, essa aproximação pode resultar em um beco sem saída empobrecedor. Muito facilmente o tratamento temático pode fazer os filmes desaparecerem numa discussão sociologizante ou historicizante ou sequer isso. Do lado da filosofia, é arriscado substituir o rigor conceitual em exemplificação casual, como se fosse possível achar um exemplo estético para toda teoria.

Se Matrix pode “preparar para Platão”, como quer Alain Badiou, será mesmo a experiência cinematográfica a mais propícia à concentração conceitual? Ultimamente, não parece que isso é um problema. Por exemplo, no Rio de Janeiro, os professores Alexandre Costa e Patrick Pessoa coordenaram durante alguns anos um experimento bem-sucedido que trouxe o debate filosófico a público, chamado A história da filosofia em 40 filmes: centenas de pessoas, durante 40 semanas, assistiram a clássicos do cinema, cujas exibições foram seguidas de palestras sobre temas como o totalitarismo, o desejo, a liberdade, o perspectivismo, o racionalismo científico... E isso só se tornou possível pelo cinema. Não resta dúvida, então, que a tela, em certa medida, substitui o espanto platônico: quando menos se espera, a experiência cinematográfica nos surpreende, nos tira o fôlego e os pés do chão, nos incomoda, nos emociona, nos põe a pensar... Filosofamos, assim, dentro da própria caverna de Platão.

Escreverei, então, sobre o espanto e o exercício do pensamento que o cinema consegue proporcionar, a partir de três pensadores que se ocuparam do assunto. É claro que não pretendo ser exaustivo, apenas desenhar certo percurso. Os pensadores são André Bazin (1918-1958), Gilles Deleuze (1925-1995) e Stanley Cavell (1926).

A filosofia do cinema atinge plena maturidade na obra de André Bazin, o crítico francês que negava ser filósofo e, no entanto, empreendeu a mais filosófica das investigações, buscando entender o que é o cinema. Seu ponto de partida é a fotografia. No texto seminal, “A ontologia da imagem fotográfica”, de 1945, em que ele entende a fotografia não como cópia, mas como pedaço do real: “A fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para a sua reprodução”. De fato, a fotografia em película é exatamente isso: ao expor algum material extremamente sensível à luz, tem-se ali fisicamente registrado o traço refletido de objetos e seres do mundo sensível. Não creio ser exagero dizer que Bazin entende a fotografia primordialmente como um índice, o signo que, na semiótica de Peirce, representa seu objeto por manter com ele uma relação física, como a biruta significa a direção do vento e a fumaça significa o fogo. Ou, ao menos, assim sempre se acreditou, mesmo que ingenuamente. Mas Bazin não é ingênuo: ele não entende a fotografia como mera cópia ou resultado de um processo físico-químico. A fotografia consegue produzir uma representação objetiva da realidade porque torna secundária a mediação humana. Diferentemente da pintura, onde a mão do artista é essencial, na fotografia o olhar subjetivo é dependente da câmera e das lentes, não à toa chamadas de objetivas. É o público que confere a esse tipo de imagem do real uma credibilidade maior: “A fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para a sua reprodução. O desenho mais fiel pode nos fornecer mais indícios acerca do modelo; jamais ele possuirá, a despeito do nosso espírito crítico, o poder irracional da fotografia, que nos arrebata a credulidade”.

O cinema acrescenta o tempo a esse processo. “Pela primeira vez,” afirma Bazin, “a imagem das coisas é também a imagem da duração delas, como que uma múmia da mutação.” Parafraseando uma tese de H. Bergson sobre o tempo e a duração, Bazin afirma que o cinema revela algo do real ao participar de seu ser em movimento, isto é, seu vir-a-ser. Se a fotografia já não era cópia do real, muito menos o é o cinema. Bazin evita, assim, identificar o cinema com um registro documental, embora não negue ele poder sê-lo. Mais que mero instrumento de registro histórico, o cinema produz efeitos na realidade, tocando “a sua carne e o seu sangue”, de maneira a nos impor uma tomada de consciência. Bazin fala, aqui, do neorrealismo italiano, os filmes de Rossellini, De Santis, Visconti e De Sica que chamam a uma tomada de consciência produzindo uma “imagem-fato”. O que se exprime nesses filmes (os de Rosselini, em particular) é um recorte de real escolhido conscientemente, uma escolha não exclusivamente moral ou estética, mas ontológica, “no sentido de que a imagem da realidade que nos é restituída permanece global, da mesma maneira, se quiserem uma metáfora, que uma fotografia em preto-e-branco não é a imagem da realidade decomposta e recomposta ‘sem a cor’, mas uma verdadeira marca do real”. Assim, a imagem do cinema neorrealista é um signo do real, do tipo que foca nossa atenção em fatos particulares e, com isso, metonimicamente significa o real.

Anos depois, Gilles Deleuze retomará essa ideia e, em dois livros, a desdobrará em dois conceitos: o cinema é imagem-movimento (Cinema 1, 1983) e imagem-tempo (Cinema 2, 1985). Com esses conceitos, Deleuze não pretende capturar a essência do cinema. Ele mesmo diz: “Eu não era besta a ponto de querer fazer uma filosofia do cinema”. Ele tampouco pretende desfigurar o que é próprio de cada atividade, pois uma coisa é escrever trabalhos filosóficos, outra é fazer filmes: “seria uma catástrofe dizer que Kant e Ozu são a mesma coisa!”. O que ele diz fazer é uma “história natural” do cinema, quer dizer, não uma história dos movimentos e da linguagem, mas uma narrativa de como o cinema deixou de ser uma projeção sobretudo mecânica de imagens para incorporar organicidade e temporalidade. Bem pode-se dizer que ele na verdade faz filosofia com o cinema.

Já no início de Cinema 1, o filósofo declara pretender fazer uma “taxonomia, um ensaio de classificação de imagens e signos”, organizados em função de operações técnicas (enquadramento, decupagem ou montagem), de cineastas (Ozu, Antonioni, Buñuel, Welles, dentre outros), de escolas e gêneros (neorrealismo, naturalismo, western ou comédias de costumes). Com a Segunda Guerra Mundial, uma ruptura suscita mais uma classificação, as “imagens-cristal” além das imagens-movimento e imagens-tempo. A imagem-movimento caracteriza o primeiro cinema, aquele em que as ações e as reações desenrolam-se diante de uma câmera fixa e em sequência linear correspondem-se logicamente. Com a imagem-tempo, isso muda: as personagens não reagem mais, mas surgem situações óticas e sonoras puras, cuja materialidade é a do próprio tempo. Por exemplo, em Um corpo que cai, de Hitchcock, um Scottie (James Stewart) paralisado não consegue reagir, e isso significa o esvaziamento da imagem-movimento. Aparece no cinema o tempo em sua essência mais douradoura. É em Ozu que Deleuze vê surgir não o tempo mecânico, cronometrado, mas o tempo pela perspectiva do humano, vivido e experimentado. E ainda podemos lembrar o final d’O eclipse, de Antonioni, a rua vazia de pessoas, como uma metáfora do nada absoluto possibilitado pela Segunda Guerra: que tempo é esse esvaziado de vida? E também os filmes de Tarkovski, esse estupendo adversário de Einsenstein, que com todas as forças tenta lutar contra o enquadramento e o fechamento dos campos. Exemplos podemos encontrar inúmeros, mas o que isso significa?

Talvez que ainda reste uma alternativa ao nada, pois também existem as imagens-cristal. Formadas pela conjunção do atual com o virtual, podemos nelas ver a coexistência do passado e do presente numa mesma imagem. É como se houvesse uma cristalização da imagem ótica atual, como se víssemos um todo com diversas facetas e conseguíssemos então projetar-nos a nós mesmos além do imediato. Por isso, a imagem-cristal é uma representação de como nós, sempre em movimento e de dentro do tempo, atuamos nele. Apenas três filmes, para Deleuze, apresentam imagens-cristal: Zvenigora (1928), do diretor ucraniano Alexander Dovchenko, Eu te amo, eu te amo (1968), de Alain Resnais, e Um corpo que cai (1958), de Hitchcock. Atenção: o filme de Dovchenko é anterior à Segunda Guerra, o que mostra que o problema de Deleuze não é histórico, mas essencialmente filosófico: a imagem-cristal não é uma característica de certa época de cinema, mas de certos filmes que, para Deleuze, nos permitem compreender melhor a metafísica do tempo e da memória que fica apenas mais evidente depois da Segunda Guerra. O interesse de Deleuze por Peirce, inventor da semiótica, pode ser esclarecido por aí, uma vez que a semiose – a ação dos signos – pode ser representada como uma “imagem em movimento do pensamento”, não só o da mente humana, mas também o pensamento objetivado externamente, em signos materiais e biológicos.

Menos conhecida no Brasil é a obra de Stanley Cavell, filósofo estadunidense que dedicou três livros ao cinema. Para ele, a filosofia faria bem em abandonar os altos picos da metafísica para se confrontar com o cotidiano, como faz o cinema. O cinema não é, então, um objeto de estudos para a filosofia, muito menos um instrumento pedagógico para ela, mas uma forma autônoma de interpretar o mundo e refletir sobre ele, com a qual a filosofia poderia aprender alguma humildade. De fato, o cinema não precisa da filosofia e até mesmo a despreza. Aristóteles só é personagem por ter sido tutor de Alexandre, o Grande, e a figura do pensador sério é muitas vezes alvo de armas mortíferas (como em O conformista, de Bertolucci, no qual um filósofo deve ser assassinado). 

Cavell, influenciado por Ralph W. Emerson e Ludwig Wittgenstein, desconfia das nossas certezas comuns, ao mesmo tempo em que valoriza as práticas cotidianas. Se o mundo existe de fato, será que conseguimos dar sentido a ele? Será nosso conhecimento uma base segura para nossas ações? E, no entanto, agimos: o mundo é um moinho de triturar sonhos mesquinhos, todos sabemos, e isso nos obriga sempre a reconhecê-lo, mesmo com as ilusões reduzidas a pó. É claro que sempre podemos negá-lo absolutamente, cometendo o suicídio ou algo parecido, mas o cinema não deixa de ser, por causa de nossa falibilidade, uma imagem excepcional de como conseguimos lidar com a irredutibilidade do real à nossa vontade: na sala de cinema, o mundo real ficou lá fora e vemos outra realidade, a qual aparece como uma visão de mundos possíveis. Com efeito, esse é o título de seu principal livro sobre o cinema: O mundo visto: reflexões sobre a ontologia do cinema (de 1979, sem tradução para o português). Sua ontologia é diferente da de Bazin. Cavell tematiza não a presença do mundo e nossa inserção nele, mas a distância, o sentido de alheamento diante de uma realidade vista na tela. Essa ambivalência paradoxal – um real projetado – marca, de fato, uma característica inequívoca do cinema, que é a obliteração do narrado pelo diretamente vivido: a um espectador de filmes, ninguém conta uma história, ele mesmo a vê desenrolar-se na sua frente. No entanto, pelas lentes do cinema, o mundo é irrealizado, o que nos põe em situação frágil e necessariamente cética.

Essa postura cética, porém, não faz de Cavell um pessimista, ao contrário! Ele identifica, num extraordinário exercício de crítica, dois (sub-)gêneros cinematográficos: a comédia de re-casamento e o melodrama da mulher desconhecida (nos livros Buscas de felicidade: Hollywood e a comédia de recasamento, 1981, e Lágrimas de contestação: o melodrama da mulher desconhecida, 1997, ambos também sem tradução para o português). Desconfiado do cinema autoral, Cavell aborda filmes buscando o que têm em comum, e encontra neles uma resposta ao ceticismo centrada na nossa humana falibilidade. Há um motivo comum: casais se separam e voltam a se unir. Na segunda chance, a reconciliação admite as falhas e as limitações de cada um, o que permite às personagens reverem suas posições e recomeçarem uma nova vida, em busca de uma outra felicidade, mais mundana e menos certa. Se na comédia essa busca será um projeto do casal, no melodrama será tarefa solitária da mulher, em luta contra as imposições do mundo masculino.

Recentemente, com os dispositivos eletrônicos e a experiência da sala de cinema pulverizada, volta a pergunta sobre a opacidade e a transparência e a relação entre o material mesmo da narrativa, que hoje em dia, na era do digital, não se pode propriamente chamar de filme, e a projeção das imagens, que também não é mais feita como antes, pelas costas do público. Teria o cinema se dissolvido na nossa era pós-mediática, quer dizer, aquela em que todos os meios valem, para sair da sala escura e invadir a vida cotidiana definitivamente se confundindo com ela? Pois, de fato, hoje em dia qualquer celular é também uma filmadora e qualquer pessoa pode construir um roteiro ainda que mínimo com sequências da rua. Ou então estariam as outras artes, já há muito dissolvidas e liberadas de seus tradicionais meios, buscando se apropriar das formas e dos conteúdos do cinema? Não só a experiência da sala escura é objeto de certa nostalgia e, consequentemente, culto, como também a narrativa e o documentário parecem invadir outras atividades, das bienais ao grafitti, do rap às artes plásticas. Questões essas que deixamos abertas ao filosofar do público.


Cassiano Terra Rodrigues é professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP ctrodrigues@pucsp.br