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Educação inclusiva: valorização da diversidade
Por Tássia Biazon
10/02/2016
A educação é um direito de todos, proclamado na Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, e reiterado cinco décadas depois na Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Mas o acesso, permanência e sucesso escolar continuam bastante desiguais e os desafios educacionais ainda são colossais. Para alunos com deficiências, são ainda maiores. Só em 1994, com a Declaração de Salamanca, defendeu-se a inclusão desses alunos em sistemas regulares de ensino.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou em 2015 a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, realizada em parceria com o Ministério da Saúde. Os dados mostram que dos 200,6 milhões de brasileiros residentes em domicílios particulares permanentes, 6,2% possuía pelo menos uma de quatro deficiências: intelectual, física, auditiva e visual.

Antigamente, essa parcela da população sofreria exclusão educacional, pois alunos com deficiências recebiam educação separada da população sem deficiências. Era um sistema paralelo de ensino, separando os alunos em “anormais” e “normais”. Uma inclusão com exclusão, de acordo com a doutora em educação Mônica Kassar, em seu artigo “Educação especial na perspectiva da educação inclusiva: desafios da implantação de uma política nacional”, publicado no periódico Educar em Revista.

Entre diversas leis, decretos, declarações, convenções, é crescente a preocupação com a educação inclusiva, desde a Constituição Federal de 1988, e mais recentemente, em 2015, com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

Dados preliminares do Censo Escolar publicados em 2015, referentes a 2014, mostram um aumento de matrículas de alunos com deficiência nas redes públicas municipais e estaduais de ensino. Em 2014, cerca de 700 mil estudantes com deficiências estavam matriculados em classes comuns, enquanto em 1998 eram apenas 26 mil.

A professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Bauru, Vera Lúcia Capellini, doutora em educação especial, diz conhecer várias experiências de alunos com deficiências em escolas particulares, mas menciona que “alguns pais têm procurado as escolas públicas, pois nelas o atendimento pedagógico especializado vem sendo ampliado”. Ela lembra que isso também deveria estar presente nas escolas privadas. “Muitas vezes, os pais acabam assumindo pagar além da mensalidade, por um professor de apoio, ou estagiário para apoiar a educação do filho com deficiência”, observa.

A fisioterapeuta Rita Bersch, que trabalha com formação de professores para o Atendimento Educacional Especializado (AEE), diz que a escola deve disponibilizar esse tipo de atendimento diferenciado, oferecido em contraturno; mas que cabe aos pais optarem ou não pelo uso dele por seus filhos. Segundo ela, uma das grandes fragilidades da educação inclusiva é a formação do professor de AEE. “É necessária uma formação contínua e atualizada para que esses professores conheçam e usem as ferramentas que auxiliam os alunos com deficiências”, destaca Bersch.

Capellini reforça ser inegável o crescimento do acesso de alunos com deficiências, mas salienta que ainda não garantimos o acesso para todos esses alunos. “Eles não representam 2% dos demais alunos e esse número precisaria chegar a 10%, o que é esperado de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS)”, avalia.

A tecnologia assistiva na educação

O uso das tecnologias na educação, que aumenta as potencialidades dos alunos de uma forma geral, é imprescindível para a implementação de um sistema educacional inclusivo quando se trata de tecnologia assistiva (TA), juntamente com a ampliação das políticas públicas direcionadas ao AEE. “É vital que cada sistema de ensino, cada escola e cada sala de aula, se aproprie de novas práticas, políticas e culturas”, afirma Capellini, convicta da contribuição das tecnologias em geral para a aprendizagem do aluno com ou sem deficiência.

Segundo Bersch, em sua publicação “Introdução à tecnologia assistiva” (2013), TA refere-se a todos os “recursos e serviços que contribuem para proporcionar ou ampliar habilidades funcionais de pessoas com deficiência e, consequentemente, promover vida independente e inclusão”. “Objetiva eliminar ou minimizar as barreiras que estejam impedindo a aprendizagem, sejam elas arquitetônicas, pedagógicas, instrumentais, comunicacionais ou atitudinais”, define Capellini, exprimindo ser essencial a TA para implementar a política de educação especial na perspectiva da educação inclusiva.

O Ministério da Educação (MEC) introduziu os serviços de TA nas escolas públicas por meio do programa “Salas de Recursos Multifuncionais”. São espaços onde o professor especializado realiza o AEE para alunos com deficiência, tendo à disposição equipamentos, mobiliários e materiais didáticos e pedagógicos. Bersch diz que atualmente são cerca de 40 mil salas de AEE no país. “Os recursos oferecidos são para educação e não para reabilitação. A partir deles, os professores encontram apoio tecnológico que facilita o aprendizado de diferentes alunos. Mas o professor não deve perder o foco de desenvolver seus alunos, também, fora da sala de recursos”, esclarece a fisioterapeuta.

Os recursos de TA podem variar de uma simples bengala a um complexo sistema computadorizado, segundo Bersch. São computadores, softwares, hardwares especiais e diferenciados, materiais didáticos e paradidáticos em braille, língua brasileira de sinais, leitores de texto, textos ampliados, textos com símbolos, mobiliário acessível, recursos de mobilidade pessoal, aparelhos de escuta assistida, auxílios visuais, materiais protéticos etc. “Para a adequação desses recursos, o professor deve levar em consideração quem é seu aluno, em que contexto o aluno está inserido e quais tarefas o aluno realizará”, analisa Bersch.

Esses recursos, segundo Capellini, fazem parte do dia a dia de muitos indivíduos, como estudantes e idosos. “Eles podem estar próximos a nós e não serem percebidos como TA. A bengala que a avó usa; a lupa que um vizinho utiliza para ler; uma cadeira de rodas empregada por um familiar ou amigo”, exemplifica.

Há várias pesquisas em TA financiadas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e parceiros. Nos últimos anos, o país produziu em torno de 1,5 mil produtos tecnológicos na área, de acordo com o secretário de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social, Eron Bezerra. Bersch reconhece que há muita coisa no mercado, dentre softwares gratuitos a produtos internacionais, mas faz uma ressalva. “Os produtos de alta tecnologia disponíveis normalmente são importados, ou seja, caros. E até que certos produtos brasileiros estejam acessíveis, levará um tempo”. Bersch lembra que “todo o indivíduo tem o direito de acesso aos recursos, logo o Estado tem o dever de fornecê-los”, afirmando que alguns pais, ao recorrerem, ganham muitos deles.

Capellini observa que há muitos recursos confeccionados para suprir necessidades específicas da população ou pessoas com deficiências, mas, segundo ela, “muitos equipamentos e recursos originalmente pensados, projetados e construídos para uma deficiência específica também podem ser – e têm sido – utilizados para pessoas com outras deficiências.” A fim de exemplificar, Capellini usa uma aplicação da área de comunicação alternativa (CA), que oferece recursos utilizados por pessoas com autismo, paralisia cerebral, deficiência física, deficiência intelectual, entre outras.

O recurso apresentado na imagem abaixo, de acordo com a pesquisadora, é um tabuleiro para afixar figuras, fotos e outros recursos de CA. Elaborado em Duratex, o tabuleiro possui pautas em velcro que possibilitam grudar as figuras desejadas para a comunicação. “Na imagem, o recurso é utilizado por um estudante que possui deficiência intelectual e física. No tabuleiro, estão afixadas fotos de atividades das quais ele participa. Como tinha dificuldade em compreender a sequência das atividades a serem executadas, elas foram fotografadas em cada uma das fases, o que permitiu explicar o que seria realizado”.


Tabuleiro de parede
Fonte:
Manzini e Deliberato (2004, p. 15).

Um exemplo a ser seguido

Em dezembro passado, o MEC divulgou 178 instituições educacionais brasileiras inovadoras e criativas, duas da cidade de Campinas: a Escola Municipal de Ensino Fundamental Padre Emílio Miotti, e a Escola Curumim, da rede privada, que oferece educação infantil e ensino fundamental. Criada em 1978, a Curumim, administrada por 12 sócios, possui 60 funcionários, 440 alunos, dos quais 60 com alguma deficiência.

Com os pilares de cooperação, livre expressão, autonomia e trabalho, a Escola Curumim é edificada na pedagogia Freinet. Implementada pelo educador francês Célestin Freinet em 1920, essa pedagogia tem a filosofia de uma escola do povo, para o povo e com o povo, trabalhando diversidade e inclusão. A diretora Glaucia Ferreira, doutora em educação pela Unicamp, diz que a pedagogia Freinet, por si só, é uma pedagogia inclusiva. Assim, a Curumim difere da maioria das escolas, principalmente da rede privada, que segundo ela, estão bem atrasadas na educação inclusiva. “Há um interesse nesses ambientes escolares em serem fortes. E para isso, desejam alunos fortes. Logo, eles padronizam seus alunos, e os denominados ‘fracos’ são excluídos”, manifesta.

Cada sala de aula da Curumim é composta por até 25 alunos, tendo em média de dois a três alunos com deficiência, reproduzindo na turma a diversidade da sociedade. Quanto aos equipamentos utilizados pelos alunos com deficiências, vão dos mais sofisticados aos mais simples: computador, lousa digital, suporte para apoiar os pés, toalha de borracha para o caderno não escorregar, caderno com linhas bem espaçadas, adaptador de lápis etc.

Divergindo da escola tradicional, em que todos fazem a mesma coisa, ao mesmo tempo, (por vezes, competitivamente), a Curumim é um ambiente de cooperação, com trabalhos coletivos, como montar um painel, álbum ou livro. “O professor desenvolve diversos ateliês numa mesma aula. Cada grupo de alunos trabalha com determinada atividade, e as diferenças se diluem ali”, reflete Ferreira.

É uma escola que não se limita à regra de que o professor é quem ensina e o aluno é quem aprende. “Professor e aluno estão lado a lado, compartilhando experiências e aprendendo juntos”, conta a diretora. Na sala de informática, além de outras atividades, os pupilos são programadores, trabalhando com a linguagem de programação Logo, desenvolvida na década de 1960 no Massachussets Institute of Technology (MIT), pelo matemático Seymour Papert. O programa permite ao educando, inclusive com alguma deficiência, programar desenhos, desenvolvendo raciocínio lógico e criatividade.

A instituição têm alunos com paralisia cerebral, transtorno do espectro autista, hiperatividade, deficiências múltiplas (intelectual, auditiva, motora), síndrome de Down, pânico, kabuki. Uma diversidade que, ao invés de ser vista como inconveniente, é enxergada como oportunidade de aprender ainda mais. “Os benefícios dessas unicidades são incontáveis. Pais de alunos sem deficiências dizem que o aprendizado de seus filhos vai muito além de matemática e português. Eles aprendem a respeitar as diferenças, resolver conflitos, ser sensíveis à vida”, revela, encantada, Ferreira.

Inclusão: um desafio da educação

Em sua tese de doutorado, defendida em janeiro de 2016, “De portas abertas à vida e à diferença: a pedagogia Freinet e a inclusão”, Glaucia Ferreira cita o modelo educacional tradicional, intolerante às diferenças. “O aluno que não corresponde às exigências previstas pela aula é percebido como um empecilho ao bom andamento do trabalho. Em nome de uma suposta igualdade, as diferenças são sufocadas. É aqui que podemos ver o quanto a entrada do ‘diferente’ constitui um problema e vemos o recurso à tolerância se tornar nefasto. É aqui que vemos surgir a expressão ‘aluno de inclusão’ – o aluno tolerado porque diferente, como se todos os outros fossem iguais”.

A educação escolar busca o desenvolvimento pessoal, social e profissional. E, para isso, deve ter seleção de conteúdos pedagógicos, materiais didáticos e metodologias conforme as necessidades de cada aluno, adaptação curricular, turmas reduzidas, reestruturação do espaço escolar, utilização de salas com recursos, formação continuada dos professores, organização, preparação, interação e conscientização da equipe pedagógica frente aos diferentes modos de aprender e ensinar, além de vínculo entre escola, aluno, família e comunidade.

A inclusão vai além da matrícula, do acesso e da permanência escolar. Não é simplesmente inserir, mas identificar as capacidades e limitações de cada estudante; pois, ninguém é igual, todos são diferentes. Ser uma escola que possibilite qualquer pessoa fazer parte dela, que se adeque às singularidades de cada aluno, ao invés de exigir que ele se adeque a ela. Essa é a escola inclusiva, que valoriza a diferença entre os infinitos eus. Porque somos como pássaros: em meio à diversidade de cantos, cada um expõe uma beleza diferente e apreciável.