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Artigo
Os efeitos biológicos do acidente com o césio-137 em Goiânia
Por Emico Okuno
10/09/2015
Vinte e oito anos atrás, a cidade de Goiânia se transformou num palco de horrores, e o mundo tomou conhecimento da tragédia que assolou todas as pessoas dessa cidade. A população mundial já estava ressabiada com a explosão do reator número 4 da usina de Chernobyl, 17 meses antes, que havia contaminado com radioisótopos, principalmente o césio-137, quase todo o continente europeu e grande parte da antiga União Soviética. O nível de contaminação variou de local para local, sendo maior onde a nuvem radioativa foi levada pelo vento e a chuva caiu transportando o césio-137 para o capim e para o solo. O potássio é um alimento importante para uma planta, e o césio o simula quimicamente, por estar na mesma coluna da tabela periódica. Assim, o capim foi se contaminando ao absorver o césio avidamente através da raiz, no lugar do potássio. Em alguns países próximos do reator acidentado, houve a recomendação para não se alimentar as vacas com feno fresco contaminado. Mas isso não aconteceu na Europa como um todo, e as vacas, ao comerem capim, se contaminaram e passaram a produzir leite com césio-137.

No início de 1986, havia sido lançado no Brasil o Plano Cruzado, um plano econômico que estabeleceu o congelamento de preços, pelo então ministro da Fazenda, Dílson Funaro, que instituiu o cruzado como unidade monetária nacional, substituindo o cruzeiro. Com isso, os produtores de leite preferiram dar o leite produzido pelas vacas aos bezerros e, em consequência, começou a faltar leite no mercado nacional. A partir de agosto daquele ano, houve a necessidade de importação do leite em pó. E o leite em pó importado foi o europeu, entre outros, o leite irlandês, dos mais contaminados. As prateleiras de supermercados ficaram lotadas de latas de leite em pó de vários países da Europa e começou a circular na mídia a informação de que esses leites estavam contaminados com césio-137 e a população brasileira ficou bastante assustada.

Naqueles dias, recebemos diariamente telefonemas com consultas sobre o mal que tomar leite ou comer carne vindos da Europa poderiam causar. Algumas pessoas chegaram a trazer latas de leite em pó da Holanda e até pote de creme para acne que havia sido adquirido na Alemanha para analisarmos.

Esse era o panorama mundial, quando, no dia 1o de outubro de 1987, tomamos conhecimento do acidente1-3 com a fonte de césio-137 na cidade de Goiânia, através do Jornal do Brasil.

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À esquerda, cópia da página 12 do 1º caderno do Jornal do Brasil de 1/10/1987. À direita, Wagner Mota Pereira (vítima do acidente que aparecia na foto no jornal) em 2010. Foto: Demian Duarte.

Um aparelho de radioterapia em desuso tinha sido levado no dia 13 de setembro por dois catadores de papel, Wagner Mota Pereira e Roberto dos Santos Alves, do Instituto Goiano de Radioterapia, então um prédio em abandono sem porta e sem janela. No quintal da casa do Roberto, eles desmantelam a peça a marretadas até atingir a fonte de césio-137, que estava com atividade de 1375 curies, ou 5,09×1013 becquerels em unidade no sistema internacional. A massa do cloreto de césio era de 19,3g, e misturada a um aglutinante para compactação perfazia 92g, massa equivalente à de cerca de dois pãezinhos. Já nesse dia, ambos têm vômito, diarreia e tonturas e começam a aparecer bolhas de queimadura nas mãos. Na foto do Jornal do Brasil, Wagner mostra as enormes bolhas que se formaram em ambas as mãos. Conversando com Roberto, Wagner diz que está mal, com forte diarreia e que ele acha que foi por ter comido manga com coco, ao que Roberto retruca dizendo que ele também está com diarreia mas não comeu nada disso. Eles estavam com a chamada síndrome aguda da radiação3-4, desenvolvida em curto espaço de tempo, que é o conjunto de sintomas que resulta da exposição do corpo todo à alta dose de radiação ionizante. No dia 23 de setembro, Wagner é internado no Hospital Santa Rita, de onde, após quatro dias, é transferido para o Hospital de Doenças Tropicais. O Roberto, por sua vez, teve que amputar seu antebraço direito, por ter desenvolvido necrose, no dia 14 de outubro de 1987.


No dia 19 de setembro, Roberto e Wagner haviam vendido parte do equipamento por 1500 cruzados, equivalente a 25 dólares, a Devair Alves Ferreira, dono de um ferro-velho. Uma noite ele viu uma misteriosa luz azul saindo da fonte que havia adquirido. Ficou encantado com essa luz e para poder observá-la melhor, levou-a para a sala de sua casa no dia 21 de setembro. Em uma entrevista, Devair confessa que se apaixonou por essa luz. É aí que começa a tragédia com o espalhamento da contaminação, pois ele começou a manipular o pó de cloreto de césio e a presentear parentes e vizinhos com pequenos grãos do tamanho de grãos de arroz. Sua sobrinha, Leide das Neves, filha do Ivo Ferreira das Neves, mexeu nesse pó enquanto comia pão com ovo.

Efeitos biológicos das radiações ionizantes
A esposa do Devair, Maria Gabriela, passou muito mal a partir do dia em que a fonte foi levada para a sala de sua casa e foi examinada no Hospital São Lucas no dia 21 de setembro, pois estava com vômito e diarreia. Ela teve a intuição de que aquela peça devia ser a causa do seu mal-estar, de seus parentes e vizinhos e decidiu levá-la ao Centro de Vigilância Sanitária com a ajuda de Geraldo Guilherme da Silva, um dos empregados do Devair. A peça, com formato de uma marmita, foi colocada dentro de um saco que Geraldo carregou, mas como ainda tinha parte da blindagem, estava muito pesada. Assim, toda vez que podia, ele a colocava no chão, e foi contaminando com o césio-137, o chão, o ônibus, o dinheiro, enfim, tudo que tocava. Ao chegar no Centro de Vigilância Sanitária, a Marília Gabriela diz: isso está matando meu povo! O médico do Centro, Alonso Monteiro, suspeita que a peça continha material radioativo e alerta o escritório local da Nuclebrás. Dois físicos, Walter Mendes, da Secretaria da Saúde, e Sebastião Maia, do escritório local da Nuclebrás, vêm ao local e descobrem uma vasta área com alto nível de radiação e acionam a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) no dia 29 de setembro.


José de Júlio Rosental, diretor do Departamento de Instalações Nucleares da CNEN, foi o primeiro a chegar em Goiânia junto com dois técnicos do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), na madrugada do dia 30 de setembro. Eles montam um plano de emergência, começando com a triagem das pessoas contaminadas e irradiadas, que foi feita no Estádio Olímpico de Goiânia, próximo dos locais do acidente. Foram identificados e isolados sete focos com contaminação geral, de pessoas e do ambiente.

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À esquerda, terreno à Rua 57 em Goiânia1, onde a fonte de césio-137 foi aberta em 1987. À direita, o mesmo terreno em 2013.

Inicia-se o envio de pacientes ao Hospital Militar Marcílio Dias no Rio de Janeiro. Todos que foram enviados para esse hospital apresentavam contaminação interna e externa, radiodermites severas e sérios problemas no sistema hematopoiético.

Até o final daquele ano fatídico morreram quatro pessoas:

  • Maria Gabriela Ferreira, com 37 anos, esposa do Devair Alves Ferreira, no dia 23/10/1987.
  • Leide das Neves Ferreira, com 6 anos, sobrinha da Marília Gabriela e filha do Ivo Ferreira, irmão do Devair, no dia 23/10/1987.
  • Israel Batista dos Santos, empregado do Devair, que desmontou parte da fonte de césio-137, com 22 anos, no dia 27/10/1987.
  • Admilson Alves de Souza, outro empregado do Devair, com 18 anos, no dia 28/10/1987


Nesses acidentados, as doses estimadas através de dosimetria externa e interna, via análise de aberrações cromossômicas e de excretas, foram respectivamente de 5,7Gy (grays), 6,0Gy, 4,5Gy e 5,3Gy, isto é, todas acima da chamada dose letal de 4Gy, que mata 50% das pessoas expostas num intervalo de 30 dias. As necrópsias realizadas mostraram infecção generalizada, septicemia e um quadro hemorrágico severo, chegando a causar dano completo em órgãos internos.

Devair Alves Ferreira apresentou perda total de cabelo e ficou com a pele muito escura por causa da queimadura, por ter recebido uma dose altíssima de 7,1Gy, porém fracionada. Ele morreu após 7 anos, em 1994, de cirrose hepática, com 43 anos, e seu irmão Ivo, que recebeu uma dose mais baixa de 3Gy, de enfisema pulmonar em 2003.

De 30 de setembro a 20 de outubro de 1987, a CNEN monitorou 112.800 pessoas. Foi constatado que 1000 pessoas foram irradiadas externamente, sendo que 97% delas receberam dose entre 0,2mGy e 10mGy. Foram contaminadas externa e internamente 250 pessoas; dessas, 49 tiveram que ser internadas e 21 pessoas tiveram atendimento intensivo: 10 delas em estado muito grave.

Em fevereiro de 1988, o governo do estado de Goiás criou a Fundação Leide das Neves Ferreira, cujo Departamento Médico estabeleceu protocolos de atendimento aos pacientes e os classificou em grupos de I a III, avaliando se o paciente havia se contaminado e/ou irradiado direta ou indiretamente e o nível de dose. Essa Fundação foi substituída pela Superintendência Leide das Neves Ferreira (SuLeide) em 1999, que foi desmembrada em duas unidades: o Centro de Assistência ao Radioacidentado e o Centro de Excelência em Ensino, Pesquisa e Projetos Leide das Neves Ferreira5 em 2011.

No grupo I do protocolo de atendimento estão 54 pessoas, portadores de radiodermites e que foram expostos a uma taxa de dose mais alta. Outras 50 pessoas, foram classificadas no grupo II, incluindo familiares das vítimas diretas com nível de irradiação inferior ao estabelecido para o primeiro grupo e sem radiodermites. No grupo III, estão 517 pessoas que trabalharam no acidente, entre eles soldados, bombeiros, militares, médicos, motoristas, funcionários da Vigilância Sanitária, vizinhos de focos, parentes das vítimas e de policiais militares.

Zacharias Calil, superintendente da SuLeide, declarou à jornalista Luana Borges, do Jornal Opção, na edição 1849, de 12 a 18 dezembro de 2010, que “o monitoramento dos pacientes não constatou relações causais entre a incidência de cânceres em Goiânia e o acidente radiológico ocorrido em 1987. ‘Cientificamente não foi comprovado o aumento de câncer. Filhos e netos dos radioacidentados não têm nenhuma sequela desse tipo’. Segundo Calil, apesar de as taxas de câncer entre os acometidos não serem maiores do que as taxas expressas no restante da população, há outras doenças decorrentes do acidente radiológico. ‘Como médico, passei a ver a luta desses pacientes no dia a dia, sobretudo no que se refere à aquisição de medicamentos. Pude comprovar, clinicamente, que determinadas doenças apareceram mais cedo. Um exemplo é a hipertensão arterial, a osteoporose e a hipertrofia de próstata. Uma doença que poderia aparecer por volta de 50 ou 60 anos, foi antecipada aos 30 ou 35’. De acordo com ele, doenças ligadas ao psicológico dos pacientes também são exacerbadas. Depressão, tabagismo e alcoolismo. As vítimas apresentam um processo depressivo acentuado e necessitam de um acompanhamento psiquiátrico”.

Vigilância Sanitária
A primeira vez que estivemos na cidade de Goiânia para coleta de material contaminado para pesquisa foi em 1999. Nessa ocasião, fomos à Vigilância Sanitária para obter alguma informação, visto que a fonte de contaminação havia sido levada para lá, mas infelizmente ninguém soube nos dizer nada. Entretanto, em agosto de 2007, encontramos um artigo6 publicado na Revista da Universidade Federal de Goiás: “O acidente com o césio 137 sob o olhar dos trabalhadores de vigilância sanitária, no Setor Aeroporto à Rua 16-A”. Nesse artigo, as autoras relatam que o saco com a fonte foi levada por um casal à Divisão de Cadastro no dia 28 de setembro de 1987 e colocado sobre uma mesa da Divisão de Alimentos, onde ficou até o dia seguinte, quando foi mudado para o pátio e colocado sobre uma cadeira. Durante os dois dias, vários funcionários (81 ao todo) foram ver a peça, abriram o saco e cheiraram. Desses, 12 foram enquadrados no grupo I e os 69 restantes no grupo III. Dos 81, dez haviam falecido até a data da publicação do artigo, seis com diagnóstico de câncer de garganta, rins, pulmão, cérebro, esôfago e mama, e três por outras causas que não câncer. Dos 22 funcionários restantes, lotados na Vigilância Sanitária, dois estavam com câncer e outros 20 apresentavam problemas de saúde diversos.

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Saco com fonte de césio-137 com parte de blindagem, que foi colocado
sobre uma cadeira no pátio da Vigilância Sanitária em Goiânia.
Fonte: Nícoli, 2000


Em 2011, foi realizada pelo Centro de Excelência em Ensino, Pesquisa e Projetos Leide das Neves Ferreira5 e pela Universidade Federal de Goiás uma pesquisa para avaliar a saúde dos radioacidentados. Constatou-se que eles sofrem com a persistência de problemas psicossociais e 42,5% dos indivíduos da amostra apresentam sintomas depressivos. Muitos indivíduos do grupo I e filhos de pessoas dos grupos I e II foram a óbito por doença pulmonar obstrutiva crônica, homicídio, infarto agudo do miocárdio, insuficiência hepática e septicemia; e entre os do grupo III, por acidente de trânsito, insuficiência cardíaca congestiva, infarto agudo do miocárdio, hipertensão arterial, e acidente vascular cerebral. Há ainda, nesse grupo, 15 casos de óbitos decorrentes de neoplasias (cânceres de mama, de boca, de laringe, de colo de útero, de fígado, de língua, de amígdala).


Emiko Okuno é professora sênior do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.


Notas
1. IAEA. The radiological accident in Goiânia. Vienna, 1988.
2. Okuno, E. Radiação: efeitos, riscos e benefícios. São Paulo: Harbra, 1988.
3. Okuno, E. “Efeitos biológicos das radiações ionizantes. Acidente radiológico de Goiânia”. Estudos Avançados, 27 (77), 2013, p.185-199.
4. Okuno, E.; Yoshimura, E. M. Física das radiações. São Paulo: Oficina de Textos, 2010.
5. http://www.cesio137goiania.go.gov.br/index.php?idEditoria=3800. Acesso em 2/09/2015.
6.Silva Batista, I.R. e Borges Nascimento, M.G. “O acidente com o césio 137 sob o olhar dos trabalhadores de vigilância sanitária”, Revista da UFG, Agosto 2007, ano IX, no 1.