Por Allison Almeida, André Gobi e Guilherme Rodrigues
Apesar de toda a riqueza, a cultura caiçara pode ter o mesmo destino das tribos indígenas que habitavam o litoral. Se antes a questão era a colonização extrativista europeia, nas últimas décadas a especulação – na verdade, pirataria – imobiliária, o turismo de massa e as restrições à pesca e ao artesanato são as grandes ameaças.
Quando se pensa nos 7.363 quilômetros da costa brasileira é comum fazer uma associação direta com o turismo. O país tem um dos litorais mais paradisíacos e extensos do mundo. Além das belezas naturais, as praias, enseadas e ilhas abrigam inúmeras populações tradicionais. Antes dos europeus chegarem, o litoral brasileiro era repartido por diferentes tribos: Tupis, Tamoios, Tabajaras e Caetés são alguns dos grupos indígenas que viviam na costa e foram expulsos – alguns extintos.
Atualmente, mesmo com a maior parte da faixa litorânea utilizada para o turismo e outras atividades econômicas, principalmente a portuária e a pesqueira, o Brasil ainda abriga resquícios de comunidade tradicional no litoral. “Os caiçaras são uma mistura de povos indígenas já extintos, europeus de diversos países e negros, principalmente quilombolas que após processos de ocupação do interior devido aos diversos ciclos econômicos do Brasil colonial, ficaram relativamente isolados nessa estreita faixa de terra entre o mar e a serra, que se estende do sul do Paraná até o centro do Rio de Janeiro”, explica Antonio Carlos Diegues, fundador do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras da Universidade Estadual de São Paulo (Nupaub/USP).
Há, segundo Diegues, os “manesinhos da ilha”, em Florianópolis, e outras comunidades descendentes principalmente de açorianos em todo o litoral sul. Caiçaras são encontrados na maior parte do litoral sudeste e, mais ao norte, podemos encontrar comunidades mais ligadas às raízes africanas, como os jangadeiros e os balseiros, por exemplo, na Bahia e no Maranhão, respectivamente.
O isolamento, no caso, era resultante das dificuldades de locomoção para os centros urbanos. A musicista e cientista social Kilza Setti foi uma das pioneiras a estudar a cultura caiçara, nos anos 1950. Ela relata um de seus primeiros encontros com nativos: “Os caiçaras praticavam em sua oralidade o português arcaico, misturado com muitas palavras de origem indígena”, conta.
Com seus “causos”, histórias, costumes, culinária e música, os caiçaras contribuíram profundamente para a ampliação da diversidade cultural brasileira. A música popular caiçara é muito rica e fonte de estudos por todo o país. Dentro do repertório musical, os nativos constroem seus próprios instrumentos de forma muito rudimentar: rabecas, machetes, violas de machete e diversos tipos de tambores e instrumentos de percussão são encontrados nas comunidades, e utilizados em seus fandangos. “O povo caiçara no litoral sudeste guarda preciosas tradições religiosas e profanas. A dança da fita, congada, festa do divino, chiba, dança de São Gonçalo, entre diversas outras, são expressões culturais ainda comumente praticadas. Essas danças e músicas compõem o repertório de músicas caiçaras, o fandango”, explica Setti.
O fandango embala as noites de festejos. Ao som de uma espécie de orquestra que canta as músicas tradicionais, as mulheres agitam suas longas saias. Os homens realizam coreografias que lembram bastante a catira, espécie de sapateado comum no interior do país. Aos poucos, as crianças também entram na brincadeira e o fandango torna-se uma grande confraternização de toda a comunidade. “O fandango está profundamente ligado aos rituais agrários caiçaras, aos mutirões realizados durante a colheita principalmente do arroz, mais ao litoral sul de São Paulo e todo Paraná, e à confecção da farinha de mandioca no resto de seu território. Assim como na construção de suas casas, principalmente de pau a pique, que eram realizadas em conjunto. Primeiro se realizavam as tarefas diárias e, ao final, aconteciam os bailes e comemorações”, diz Antonio Diegues.
Apesar de toda a riqueza, a cultura caiçara está seriamente ameaçada de ter o mesmo fim das tribos indígenas que habitavam o litoral brasileiro. Se antes a questão era a colonização europeia, agora a especulação imobiliária, o turismo de massa, de alto impacto social e ambiental, as restrições ambientais para os nativos praticarem a pesca e o artesanato são os grandes problemas.
As dificuldades dos caiçaras começaram com a construção da BR-101 na década de 1970 pelo governo militar. Todo o acesso ao litoral foi facilitado, dando novas perspectivas turísticas a cidades como Ubatuba (SP) e Parati (RJ). Porém, não foram realizados estudos sobre os impactos da construção da via na cultura local. “A realização da estrada trouxe progressos. Antes levávamos horas para chegar até a cidade. Porém nos trouxe uma série de problemas”, relembra Julio Cesar Mendes, folclorista e militante caiçara.
As valorizadas terras do litoral foram alvo da ação da especulação imobiliária e dos grileiros. Boa parte da população tradicional local foi ludibriada por promessas financeiras e venderam seus terrenos por valores abaixo do mercado, mudando-se para a periferia das cidades litorâneas, migrando para outros centros urbanos ou até mesmo caindo na marginalidade. “O que houve nos anos 1970 não foi especulação, mas sim pirataria imobiliária, e é claro que eles [caiçaras] sairiam perdendo”, diz Kilza Setti.
“Meu avô trocou um terreno a beira-mar por um par de botas”. Esse impressionante relato é da militante caiçara Fátima Souza Santos, que narra como era a ação dos grileiros na época. “Eles seduziam os pescadores distribuindo presentes e dinheiro para ganhar a confiança do povo. Os grileiros convenceram meu avô a colocar o polegar direito num documento para trocar o terreno da família por um par de botas”, conta. Ainda hoje a especulação imobiliária é uma dor de cabeça para os nativos. Pelos altos valores do metro quadrado no litoral paulista, constantemente surgem propostas das mais diversas para que vendam casas e terrenos. A maioria já sucumbiu ao poder econômico, mas há caiçaras que permanecem e não estão dispostos a deixar suas raízes. “Aqui eu tenho de tudo. Não deixo o litoral por nada. Eu tenho a vida que eu quero. Pesco meu peixe, faço meus roçados quando é preciso. Se sair daqui, vou fazer o quê da vida? A natureza me dá tudo o que eu preciso. É a vida que eu pedi a Deus”, diz Altamiro dos Santos, pescador e morador da Praia Grande de Cajaiba, em Parati, há mais de 60 anos.
Estereótipos, preconceitos e etnocentrismo
A cultura caiçara é basicamente de subsistência. Em sua maioria, vivem em pequenas vilas onde praticam a pesca, a agricultura e o artesanato de acordo com suas necessidades individuais. Por conta dessa perspectiva cultural, foi inserida na sociedade uma espécie de senso comum pelo qual os caiçaras são cidadãos preguiçosos. “Quem está de fora da comunidade não percebe que os caiçaras têm um ritmo próprio que nada tem a ver com a agitação da cidade. Seguem o ritmo da natureza, da lua, das marés”, explica o antropólogo Antonio Carlos Diegues.
Além de estereótipos e preconceitos, a cultura caiçara sofre outra grave violência simbólica: a ação do etnocentrismo. A antropologia define etnocentrismo como a visão de quem considera os hábitos culturais de seu grupo superiores aos demais. Frequentemente, os pescadores têm embates com alguns grupos evangélicos, que não respeitam as tradições do folclore caiçara.
A peregrinação da Bandeira do Divino, principal festejo religioso caiçara, de tradição centenária, ilustra bem o embate. Em seu percurso pelas ruas e bairros de Ubatuba é comum a manifestação religiosa não ser mais aceita nas casas de alguns moradores que até pouco tempo atrás recebiam a peregrinação. “É complicado e magoa bastante”, diz o professor Domingos Santos, que é filho de caiçara. “De repente, chega uma religião afirmando que nossas músicas, nossa dança e nossa fé são pecados e que nós estamos errados? Que nossos amigos e parentes precisam se afastar da gente? Isso é muito sério”, desabafa.
Equilíbrio ambiental x cultura de subsistência: a questão caiçara
Renato Bueno é um dos carpinteiros mais procurados por pescadores do litoral norte de São Paulo. Pelas suas habilidosas e calejadas mãos é construída a canoa de madeira ou “canoa de um pau só” – um dos principais símbolos caiçaras. Apesar da fama local de sua profissão e de gostar do trabalho artesanal, Renato pensa em largar a profissão por conta das dificuldades para extração da madeira. “Está muito difícil. Para a construção de canoas, só trabalho com madeira morta. Mesmo assim a polícia ambiental me impede de trabalhar e exige um monte de licenças para a minha madeira. É muito difícil trabalhar assim.”.
A madeira que o artesão precisa para construir canoas vem de unidades de preservação ambiental, locais onde sua extração é proibida. O Parque Estadual da Serra do Mar, criado em 1977, com uma área de 332 mil hectares que se estende por 25 municípios paulistas – desde a divisa do estado com o Rio de Janeiro até o litoral sul de São Paulo – era um território caiçara. “Nos expulsaram, até hoje os pescadores esperam a indenização e agora não podemos nem retirar uma madeira para trabalhar”, relata o canoeiro.
O mesmo incômodo é apontado por pescadores e pequenos agricultores caiçaras. Segundo pescadores que conversaram com a reportagem, a fiscalização da polícia ambiental é ostensiva e sem espaço para qualquer espécie de diálogo. “Pescador está sendo tratado como um marginal”, exclama Wagner Klinke, presidente da colônia de pescadores da Cananéia (SP).
“O peixe é nosso sustento. Diferente da indústria, fazemos de tudo para preservá-lo. Mas a polícia ambiental não nos deixar retirar o suficiente para o sustento adequado de nossas famílias. Quem insiste acaba com os peixes e materiais de pesca apreendidos, inclusive barcos e canoas. Já teve colegas que já foram presos”, complementa Klinke.
Para o antropólogo Antonio Carlos Diegues, a mediação entre governo e a cultura caiçara precisa acontecer com bom senso, diálogo e conscientização e não com repressão e proibições. “Importamos um modelo de preservação norte-americano que não se aplica à realidade dos povos tradicionais brasileiros. De repente, famílias que conviviam harmonicamente com a Mata Atlântica e com o mar há várias gerações tiveram que procurar outras ocupações e muitos acabaram na marginalidade. Precisa existir bom senso, pois a pesca artesanal, por exemplo, é uma atividade de baixo impacto ambiental. Não há nos nativos a cultura de depredação, pois eles precisam sobretudo da natureza. Agora estão substituindo as canoas de madeira por material de fibra de vidro em nome da preservação, o que é um contrassenso. A canoa de fibra de vidro quando afunda fica no mar por até 500 anos”, opina o cientista social.
Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do estado de São Paulo não quis se manifestar sobre o tema.
Allison Almeida é graduado em jornalismo (Unicap), pós-graduado em gestão e produção em jornalismo (Puccamp) e pós-graduando em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
André Gobi é graduado em História (Unesp) e pós-graduando em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
Guilherme Rodrigues é graduado em medicina veterinária (FAJ) e pós-graduando em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.