Por Camila P. Cunha
Mudanças na “cultura do comer”, por movimentos como o Da fazenda à mesa e o projeto Quenturinha Tropical, prometem uma revolução na cadeia produtiva e no paladar
Com a descoberta das leis de Gregor Mendel sobre a herança genética, uma área das ciências agrárias conhecida como melhoramento genético floresceu. Antes baseado em mera intuição e longa experiência em selecionar sementes atrativas, o melhoramento genético passa a depender do método científico baseado em probabilidade.
Ao longo dos anos, os alimentos foram selecionados para o modelo de produção da Revolução Verde (1930-1960), dependente de químicos – pesticidas, inseticidas e fertilizantes – e vastas extensões de terra arada, com plantas uniformes, de menor porte e capazes de produtividades crescentes. A escassez se tornou abundância.
Uma agricultura com a “cara do produtor”, surgiu no Japão na década de 1960 em um grupo de mulheres que queria menos comida importada ou industrializada e mais integrada à comunidade. Essas ideias se espalharam pela Europa e América do Norte e foram precursoras de outros movimentos, como o Da fazenda à mesa (Farm-to-table).
O Da fazenda à mesa exalta a produção local com o objetivo de reconectar as pessoas com os alimentos, as formas de produzi-los e os produtores: Além de incentivar a teia de interações entre diferentes organismos (microrganismos, plantas, animais) no mesmo sistema produtivo, garantindo o tênue equilíbrio entre produção e preservação ambiental, muito bem ilustrado por Dan Barber, aclamado chef de cozinha norte-americano e proprietário dos restaurantes Blue Hill no Estado de Nova Iorque, EUA, em sua palestra Como me apaixonei por um peixe para o TED Talks.
Como neto de agricultores, Dan Barber logo percebeu que sistemas produtivos mais diversos em espécies eram capazes de produzir alimentos com aromas e sabores inigualáveis e mais nutritivos. A busca pelos melhores ingredientes, sustentáveis e éticos, fez dele uma das vozes mais influentes do movimento Da fazenda à mesa.
A jornada do chef passa pelo resgate da memória de infância na fazenda Blue Hill (Massachusetts, EUA) e o desejo de preservar suas belas paisagens através da viabilidade econômica da propriedade. E se expande pela necessidade de transformar a sua comunidade e a “cultura do comer” pelo mundo. Mais detalhes sobre a sua biografia estão disponíveis na série Chef’s table, no Netflix.
A ideia de explorar novos sabores com sementes adaptadas a sistemas de produção agroecológicos, levou o chef a cofundar a Row 7 Seed Company junto com Matthew Goldfarb, um agricultor, e Michael Mazourek, melhorista de hortaliças e professor da Universidade de Cornell (Ithaca, EUA). Sobre essa inusitada parceria, Michael Mazourek conta: “Eu estava me esforçando para levar sementes de abóbora deliciosas e mais resilientes desenvolvidas pelo meu programa de melhoramento para o mercado e Dan tinha perguntas interessantes sobre melhoramento, especificamente para sabor que, honestamente, ninguém havia me questionado antes. Como começamos a criar novas e populares cultivares juntos, tornou-se uma questão de como poderíamos compartilhar essas sementes de forma mais ampla e introduzir nossos pares no espaço da culinária e do melhoramento vegetal para colaborar no desenvolvimento de novas variedades, melhores para as nossas dietas e o meio ambiente”.
Em 2018, a Row 7 Seed Company já tem disponível no seu catálogo sete variedades inovadoras de abóboras, batata, pepino, beterraba e pimenta habanero, todas certificadas orgânicas e livres de patentes. Os preços são altos e com disponibilidade ainda restrita a um mercado da alta gastronomia. Ao envolver chefs de cozinha no processo de melhoramento, com poder de marketing e capacidade de influenciar tendências, o trabalho de melhoristas ganha visibilidade e desperta interesse. É possível que, no futuro, alimentos mais nutritivos e saborosos ganhem as prateleiras dos convencionais hortifrutis e feiras de ruas.
Sobre a busca por sabor e o papel dos chefs, Mazourek comenta: “Os chefs participam totalmente do processo. Eles definem as prioridades e nos ajudam a avaliar o sabor. Esse tipo de melhoramento olha para o futuro, cria tendências que mudam o paladar. Por exemplo, nos EUA, os chefs fizeram com que as preferências mudassem para pimentas mais picantes e saladas tipo ‘baby’, mais nutritivas e saborosas. Traçaram a linha entre os produtos cultivados localmente e o sabor, criando uma economia agrícola que permite que pequenos agricultores complementem a sua renda”.
“Na seleção pelo sabor, é preciso degustar muitos produtos – milhares de amostras por ano – e avaliar o seu desempenho em diferentes usos. O sabor pode ser absolutamente definido como uma característica agronômica, mas é um desafio definir o que é ‘delicioso’ de maneira semelhante a como definimos a grandeza em, digamos, arquitetura ou arte. Há uma tremenda variação no sabor, mas a maioria das pessoas experimenta apenas uma fração do que a natureza tem a oferecer. É empolgante ver quais combinações de sabores podemos criar quando cruzamos espécies cultivadas que têm diferentes variedades em diferentes culturas. Podemos configurar ferramentas analíticas para medir aromas voláteis, doçura e textura, enquanto sequenciamos os genomas e selecionamos as plantas geneticamente promissoras para essas características. Ainda assim, isso não define se algo será bom ou ótimo”, acrescenta Mazourek.
E, finaliza “comparado aos EUA, muitas outras culturas valorizam o sabor do alimento, e é por isso que a comunidade está crescendo em nível global. Temos vários chefs e parceiros no melhoramento vegetal apoiando o projeto e incentivando essas colaborações em todo o mundo, proporcionando aos agricultores acesso a sementes adaptadas à sua região. Há também uma grande oportunidade para o intercâmbio cultural entre países através das sementes, abordagens de melhoramento, práticas agrícolas e interpretação culinária dos novos ingredientes”.
Iniciativa brasileira pela busca de novos sabores: o Projeto Quenturinha Tropical
A busca por sabores inusitados é também de interesse de pesquisadores nacionais. O projeto Quenturinha Tropical, idealizado pelos melhoristas de hortaliças Cyro Paulino da Costa, professor aposentado da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, e Fernando Cesar Sala, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em Araras, propõe uma nova interpretação da pimenta biquinho, a favorita dos brasileiros.
“A biquinho tem muitos atributos de qualidade, mas é uma pimenta pequena, com muita semente e polpa fina. Por que não melhorar? Desenvolver algo novo? No banco de germoplasma, tínhamos uma pimenta que lembrava uma pitanga, um pitangão, da mesma espécie da biquinho, muito doce e nada pungente”, comenta Fernando. “Uma expedição do Instituto de Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) identificou e coletou na cidade de Benjamin Constant (AM) plantas da espécie Capsicum chinensis. O material vegetal, que impressionou pela doçura, me foi enviado por um ex-aluno, que pensou ser de baixo valor comercial”, explica Cyro.
O cruzamento da pimenta vinda do Amazonas com a biquinho levou ao desenvolvimento de linhagens, com os mais diversos atributos de qualidade e formato de fruto. Quando cruzadas entre elas, geraram uma nova variedade, ainda em fase experimental, batizada carinhosamente de quenturinha. “A primeira tentativa de fazer um híbrido com duas pimentas doces [como mãe e pai], tinha resultado ardido”, conta Fernando, e acrescenta “para chegar na quenturinha, várias combinações de cruzamentos foram testadas para encontrar a melhor delas”.
A nova variedade de pimenta tem frutos cinco vezes maiores que os da biquinho, com um formato de coração e polpa grossa, além de ter excelente rendimento. O grande diferencial está no paladar, como descreve Cyro, “logo após a mordida dá medo do ardor, mas, de repente, o ardor é leve e uma sensação de quenturinha é mantida, conforme um leve adocicado toma conta da boca. Leve ardor e leve dulçor. A experiência é uma redescoberta da pimenta”.
O desafio agora é transformar as sementes em negócio e colocá-las no mercado. Segundo Fernando, “a cadeia precisa ser acionada em seus diversos elos, dos produtores aos chefs de cozinha. Estamos na fase de produção de sementes e esperamos, no segundo semestre deste ano, aumentar a escala de produção. Já temos produtores interessados, alguns deles fornecedores de restaurantes brasileiros famosos”.
O melhoramento genético é ferramenta chave para o desenvolvimento de novas variedades adequadas aos interesses e necessidades humanos. O desafio a frente é ter variedades resilientes à instabilidade climática e à degradação ambiental, adaptadas aos novos e alternativos sistemas produtivos (cultivo orgânico, agroflorestal, rotacional). Sem esquecer a busca poética por sabores e aromas.
Camila P. Cunha é engenheira agrônoma (Esalq/USP) e doutora em genética e biologia molecular (Unicamp). Atualmente é pós-doutoranda no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).
- Imagem de capa: Johnny Autry.