Por Carlos Vogt
O termo robótica, que se refere, grosso modo, ao estudo e à construção de robôs, foi criado em 1942 pelo escritor Isaac Asimov, no conto “Runaround”.
Asimov, autor prolífico de obras de ficção científica e também de obras científicas, enunciou os três princípios, depois acrescidos de um quarto, mais amplo e geral, que ficaram conhecidos como As Três Leis da Robótica, que deviam ser implantadas nos cérebros positrônicos dos personagens robôs em seus livros:
1ª Lei – Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei – Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto quando tais ordens entrem em conflito com a 1ª Lei.
3ª Lei – Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não se choque com a 1ª ou a 2ª Leis.
E a Lei Zero, enunciada posteriormente e prevalecendo sobre as outras três:
– Um robô não pode fazer mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.
De um modo geral, pode-se dizer que a literatura de ficção científica pautou as suas narrativas por essas leis, violando-as, para recompô-las na ordem futura das soluções dramáticas.
Em 1968, Philip K. Dick publica o romance Do androids dream of eletric sheep que seria a inspiração básica para o filme Blade runner (1982), de Ridley Scott, e depois para o filme Blade runner, 2049, de Denis Villeneuve.
Atenho-me ao filme de Ridley Scott, primeiro para fazer coro à admiração e ao encantamento que a obra despertou, desperta e continuará despertando em gerações e gerações de cinéfilos e em espectadores ocasionais e descuidados que sucumbam ao fascínio de seu conteúdo e de sua forma e despertem com aquela sensação de que assistiram a algo a que queriam assistir, mas não sabiam que já sabiam o que era.
Foi essa sensação que experimentei quando, por acaso, no Cine Caiçara, da vila do mesmo nome, na Praia Grande, litoral de São Paulo, numa tarde de férias de 1983, assisti, pela primeira vez, ao filme, na versão primeira, com o final feliz imposto pelos produtores. Várias outras vezes, a ele assisti, incluindo aquelas com a versão do diretor, de 1997, em que o final é aberto e sobretudo ambíguo, como ambíguo é todo o filme e, em particular, o protagonista, Rick Deckard, vivido por Harrison Ford, no que diz respeito à sua identidade dividida, nas interpretações entre ser ele humano ou também um robô androide, como os que ele caça para “aposentar”, matando-os, efetivamente, na história.
Do ponto de vista das Leis da Robótica, acima mencionadas, a narrativa do filme parece obedecê-las integralmente. Os quatro androides, que retornam à Terra para tentar estender o seu prazo de validade para além dos quatro anos a que estão limitadas suas vidas, revoltam-se e matam os seus criadores humanos, sem conseguir, contudo, alcançar seu objetivo.
A cena em que Roy Batty (Rutger Hauer), pressentindo que seu tempo está se esgotando, persegue Deckard no apartamento do designer genético J. F. Sebastian (William Sanderson), e a ponto de matá-lo, na verdade, o salva de uma queda fatal, é antológica pela beleza plástica, pela emotividade do desfecho, pelo monólogo de Roy sobre suas memórias que “serão perdidas como lágrimas na chuva”.
É também impactante porque nela reside, com força simbólica e expressiva, o cerne da ambiguidade que acompanha todo o desenrolar da narrativa, interrogando, pressionando, pondo em xeque os limites da humanidade e o do não-humano.
O robô Roy, à beira da própria morte, salva Deckard porque este é humano e o faz, então, em obediência às Leis da Robótica, de Asimov, ou sabe ele, mesmo que por intuição, que o “blade runner” é ele também um androide e, assim, salvando-o, salva, na verdade, a sua própria espécie. Neste caso, ao contrário de obedecer às Leis da Robótica, o robô as transgride, apontando para a permanência, entre os humanos, do androide, em condições de uma igualdade que vai se tornando, pelo desenvolvimento da informática e da biotecnologia, cada vez mais perto da realidade.