Por Nina Beatriz Stocco Ranieri e Michel Kurdoglian Lutaif
Não há receita milagrosa para a efetivação da autonomia universitária. Como se verifica no caso das universidades estaduais paulistas, os fatores mais importantes são a responsabilidade institucional e a responsabilidade objetiva dos dirigentes. No caso das federais, o artigo 207 da Constituição Federal acabou não sendo efetivo: são administradas a partir de regras emanadas do Ministério da Educação. A edição da LDB em 1996 parecia anunciar uma nova era, fundada na descentralização, o que não se confirmou com o tempo. A legislação ordinária não controlou as principais variáveis que interferem na eficácia de sua atuação autônoma: condições de financiamento e especialidade do seu regime jurídico.
No ano de 2018 comemoraram-se os trinta anos da Constituição Federal, cujo artigo 207 assegura a autonomia universitária nas vertentes didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Em 2019, comemoram-se os trinta anos do decreto estadual de São Paulo 29.598/89, que assegurou autonomia financeira às universidades públicas paulistas.
Antes disso, em 2016, comemoraram-se os vinte anos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei 9394/96). A lei atribui às universidades públicas uma posição singular no corpo da Administração Indireta, caracterizada pela possibilidade de gozarem de estatuto jurídico especial para atender às peculiaridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo Poder Público, assim como dos seus planos de carreira e do regime jurídico do seu pessoal (art. 54). É o que também se confirma em face das disposições dos artigos 53 e 54 da LDB, relativamente aos elencos exemplificativos das prerrogativas de autonomia das universidades, entre elas a decisão sobre cursos, programas, currículos, pesquisas e investimentos, organização interna, elaboração de regimentos etc.
Apesar dos avanços legais na definição da autonomia universitária e de sua natureza jurídica específica, os seus fundamentos permanecem desconhecidos para muitos, particularmente na própria Administração Pública. Basta lembrar alguns acontecimentos recentes para exemplificar.
Em abril de 2019, o Governo Federal anunciou cortes nos investimentos de cursos de Filosofia e Sociologia das universidades federais sob o argumento de que seria priorizado o financiamento de cursos que gerassem “retorno imediato ao contribuinte”, em franco atentado à autonomia didática das instituições (em 2018, já se havia registrado a tentativa de proibir a disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” na Universidade de Brasília, devido à discordância do MEC com os temas tratados).
A seguir, houve a redução em 30% do orçamento da UFBA, UnB e UFF, em punição à “balbúrdia”, à promoção de “eventos ridículos” e a manifestações partidárias, em desrespeito à autonomia administrativa. Após a repercussão negativa, o MEC informou que o corte se estenderia a todas as universidades, o que afetou, generalizadamente, a sua autonomia financeira. Houve, ainda, o bloqueio de bolsas de pesquisa nos cursos de pós-graduação de diversas universidades, pela Capes, inclusive em relação às universidades estaduais dependentes dos mecanismos de fomento. Também em maio, a edição do decreto 9.794/19 pôs em xeque, nas universidades federais, a autonomia de gestão, devido ao novo sistema de nomeações de servidores da Administração Indireta, diretamente ligado à Presidência da República.
Somam-se a isso declarações do presidente da República de que as universidades públicas não produzem pesquisas. Sabine Righetti e Estêvão Gamba já demonstraram em artigo de opinião publicado pela Folha de S.Paulo (23/4/2019) que essas instituições são responsáveis por grande parte da produção científica nacional, encontram-se bem colocadas em rankings acadêmicos e gozam de reconhecido prestígio.
No estado de São Paulo, a Assembleia Legislativa instalou Comissão Parlamentar de Inquérito com o objetivo de investigar irregularidades na gestão das universidades estaduais. Deputados proponentes da CPI justificam-na em razão de suposto “aparelhamento de esquerda” na USP, Unesp e Unicamp.
Todos esses episódios demonstram que a defesa da autonomia das universidades públicas é um tema recorrente e, aparentemente, inesgotável.
Na história da universidade brasileira, a tensão entre autonomia e controle sempre esteve presente. Num país com pouca e recente tradição universitária, sem adequada compreensão de que a autonomia é condição inerente ao desenvolvimento da pesquisa e do ensino, afigura-se difícil aceitar a existência de ente público autônomo em relação àquele que o financia. De 1911 a 1988, cinco Constituições (1981, 1934, 1937, 1946, 1967), uma Emenda Constitucional (1/69), seis reformas de ensino superior e diversos decretos regularam, direta ou indiretamente, a autonomia universitária. No geral, essa legislação não se preocupou com o planejamento do ensino superior, foi reativa e excessivamente detalhada. A edição da LDB, em 1996, parecia anunciar uma nova era, fundada na descentralização, o que não se confirmou para as universidades federais.
No momento, essa tensão revela, de um lado, a falta de confiança do Executivo e do Legislativo nas instituições; de outro, o desconhecimento do conteúdo e significado da autonomia universitária, princípio acadêmico destinado a garantir o livre desenvolvimento da atividade intelectual. Em consequência, se estabelece um paradoxo: os poderes constituídos negam o que foi concedido pela lei.
O emprego desse procedimento constitui uma espécie de jogo sem fim porque, respeitados certos procedimentos, permite a mudança ilimitada das normas, valendo-se de padrões de legitimação que não estão dentro do sistema, mas fora dele. Veja-se que, associado o controle do Estado às ideias de “garantia de padrão de qualidade” e de “bom uso de recursos públicos”, o sistema apresenta traço tido, axiologicamente, como positivo: nossos representantes e membros do Executivo estão atentos ao interesse público e ao bom uso dos recursos públicos; não vão permitir “balbúrdia”. A intenção final de controle ideológico é assim camuflada, ameaçando o pleno desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão universitárias.
Os fatos recentes, em verdade, demonstram que o Estado não tem clara a medida do controle que deve exercer sobre as universidades. Executivo e Legislativo, nesse diapasão, atuam mais como tutores repressivos do que como coordenadores da política de educação, ou como articuladores dos diferentes níveis e sistemas de ensino, o que é o seu papel constitucional.
Impõe-se a pergunta: diante desse quadro, quais os efeitos positivos da previsão constitucional da autonomia universitária, em temos de planejamento e melhor desenvolvimento das atividades acadêmicas?
Para as universidades federais, muito pouco ou quase nada. Sua situação de dependência do MEC não se alterou significativamente após 1988, posto que a legislação ordinária não controlou as principais variáveis que interferem na eficácia de sua atuação autônoma: condições de financiamento e especialidade do seu regime jurídico.
Financiadas com recursos do Tesouro Nacional e algumas fontes alternativas (convênios, contratos, financiamento de pesquisas), além de administradas a partir de regras emanadas do MEC, o artigo 207 não se mostrou efetivo para as federais. O regime de caixa único, o contingenciamento de despesas, o peso da burocracia estatal, problemas de gestão e falta de planejamento, enfim, assim como as restrições do regime de direito público, todos são fatores estruturais que vêm limitando sua autonomia, ainda que desfrutem, em larga medida, de autonomia didático-cientifica, com liberdade de ensino e pesquisa.
Acrescem-se a essa situação fatores conjunturais, como a expansão acelerada do sistema entre 2002 e 2014, época em que as universidades federais passaram de 45 a 63. Nesse período, a partir de 2007, por força do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), todas as universidades apresentaram ao MEC planos de reestruturação, com aumento de vagas, ampliação ou abertura de cursos noturnos, elevação do número de alunos por professor, flexibilização de currículos e combate à evasão. As medidas mais do que a duplicaram o número de alunos matriculados na graduação, com aumento da pressão financeira em situação de continuada restrição orçamentária.
Já para as universidades paulistas, Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Júlio de Mesquita Filho (Unesp), a situação é bem diversa. A previsão constitucional, a LDB e o decreto 29.598/89 foram fundamentais na afirmação positiva de sua autonomia e respectivos avanços institucionais.
Estudos empíricos relativos ao período pós 1989 demonstram que, se as disputas anuais por recursos públicos são um dos embates inerentes e inevitáveis no modelo de financiamento do decreto 29.598/89, os resultados alcançados com a estabilidade de recursos ao longo dos anos possibilitaram melhor planejamento das atividades universitárias e melhores resultados acadêmicos. Demonstram, também, que o regime de autonomia de gestão financeira e patrimonial exige, sobretudo, responsabilidade institucional. Por outro lado, pesquisas centrada nas causas e consequências do desequilíbrio financeiro ocorrido na Universidade de São Paulo em razão da ampliação de gastos promovida no período de 2010 a 2013 revelam o imperativo do aprimoramento da gestão e a promoção de accountability e publicidade no setor público.
Em outras palavras, não há receita milagrosa para a efetivação da autonomia universitária. Como se verifica no caso das universidades estaduais paulistas, os fatores mais importantes, da perspectiva das instituições, são a responsabilidade institucional e a responsabilidade objetiva dos dirigentes. Ambos requerem atenção permanente, sob pena de não realização do Direito, inclusive em termos de improbidade administrativa. De parte do ente mantenedor, é imprescindível garantir recursos e meios, além de condições fáticas e jurídicas para a realização da autonomia universitária. Essas são as condições que garantem a eficácia social das normas constitucionais e legais, a possibilidade de elas serem aplicadas e observadas.
O desafio é adotar, num sistema de ensino superior altamente diversificado e heterogêneo como o brasileiro, em temos de recursos, qualidade do ensino e alunado, as medidas necessárias para efetivar a autonomia dos diversos tipos de universidade (preponderantemente de pesquisa, de extensão ou de ensino), como fez o estado de São Paulo. Outro imperativo é lembrar que a autonomia supõe, sim, controle e prestação de contas, nos limites fixados pela lei.
Nina Beatriz Stocco Ranieri é professora associada da Faculdade de Direito da USP e coordenadora da Cátedra Unesco de Direito à Educação e do Grupo de Estudos de Direito à Educação da FDUSP.
Michel Kurdoglian Lutaif é mestrando em direito do estado pela USP e advogado. Membro do Grupo de Estudos de Direito à Educação da FDUSP.