Armazenamento de energia via novas tecnologias de baterias

Por Gustavo Doubek, Chayene Gonçalves Anchieta e Thayane Carpanedo de Morais Nepel

Foto: Juliane Fiates (Tese de Doutorado – Unicamp 2020)

Muito embora hoje, em tempos pandêmicos, toda a atenção no que diz respeito ao desenvolvimento científico tem sido focada na melhor compreensão sobre o Sars-Cov-2 e sobre as inúmeras iniciativas de novas vacinas, há outras questões que requerem grandes esforços e se mostram como desenvolvimentos fundamentais para o futuro da humanidade. Um grande exemplo disso é a transição energética que silenciosamente busca substituir os motores a combustão da equação da mobilidade pela tração puramente ou parcialmente elétrica. Porém, a transição energética é algo ainda muito mais profundo do que somente isso. Ela busca uma mudança maior sobre as fontes primárias de nossa matriz energética, hoje muito baseada em fontes fósseis como óleo e carvão. Nesse cenário, o Brasil é uma feliz exceção, graças a sua grande matriz hidroelétrica quando comparada a outros países, porém ainda com um enorme potencial inexplorado em energia solar.

A transição para fontes ditas renováveis, nas quais a geração eólica e solar ganham destaque, está no centro dessa mudança impulsionada por décadas de conhecimento científico que puderam correlacionar as emissões de gases provenientes da queima de combustíveis fósseis, os chamados gases do efeito estufa, às mudanças climáticas. Ao contrário da atual pandemia, os efeitos sobre o clima na terra são lentos, porém seu impacto, caso nada seja feito, será muito mais devastador.

Segundo dados da Agência Internacional de Energia (IEA), mesmo diante de condições pandêmicas as políticas mundiais adotadas em relação às energias renováveis foram mantidas apesar da turbulência econômica. Porém, devido a sua geração intermitente, há a necessidade de sistemas de conversão e armazenamento de energia a fim de nivelar a produção e atender demandas de pico, mesmo que ocorram em momentos de baixa produção de energia. Além disso, a mobilidade elétrica é totalmente dependente de tais dispositivos. Dessa forma sistemas para armazenagem e conversão de energia andam de mãos dadas com a geração primária e a mobilidade na busca por soluções na transição energética. Como soluções adotadas hoje, destacam-se as baterias eletroquímicas, como as de chumbo-ácido (baixo custo), níquel-cádmio (em desuso) e tecnologias mais recentes como Li-Ion (para mobilidade) e baterias de fluxo redox (estacionárias), que se encontram em expansão. Porém, há ainda muitos outros dispositivos com grande potencial que prometem uma revolução.

As baterias conhecidas como Li-ion (em inglês), ou íons de lítio (em português), são as mais populares em dispositivos portáteis e as mais utilizadas na eletrificação da mobilidade, tanto em carros híbridos como 100% elétricos. O grande impacto dessa tecnologia foi também agraciado com o prêmio Nobel de Química em 2019 aos cientistas John B. Goodenough, Akira Yoshino e Michael S. Whittingham. Tais dispositivos armazenam a energia elétrica por um processo conhecido como intercalação iônica. Nesse processo, íons de lítio penetram dentro da estrutura cristalina de alguns materiais e ficam “acomodados” internamente trocando carga elétrica com o material que os recebe. Esse processo é reversível, de forma que o dispositivo pode ser descarregado e carregado diversas vezes.

Porém há um limite para quantos íons os materiais empregados conseguem acomodar sem sofrerem algum tipo de degradação em sua estrutura, o que comprometeria sua ciclabilidade. Tal limitação resulta em um valor de capacidade para essa tecnologia, que hoje norteia os 150-200 W.h/Kg de bateria, o que obriga o uso de grandes módulos para se conseguir uma autonomia comparável a um tanque de combustível líquido como gasolina ou etanol. Isso também se traduz em um alto custo associado. Por esse motivo, várias pesquisas buscam alternativas ao sistema no que chamam de “Beyond Li-ion” ou seja, “Além da Li-ion”. A tecnologia mais cotada do ponto de vista de ampliar a capacidade é uma nova classe de baterias chamada “baterias de conversão”. Nesses dispositivos, a energia não é mais armazenada pelo processo de intercalação iônica, mas sim por uma reação química do mesmo íon com moléculas oxidantes, como o oxigênio (elemento de símbolo O) ou o enxofre (cujo símbolo é S). Como resultado, há uma maior proporção de lítio por massa total da molécula formada pela reação química, tipicamente Li2O2 e Li2S, quando comparada à intercalação do íon em um cristal com massa muito maior (LiCo2O4). Por esse motivo tais dispositivos apresentam densidade energética que pode chegar a ser 10 vezes superior comparada com as baterias de Li-ion, chegando em teoria a valores ~ 1700 W.h/Kg para Li-O2 o que é comparável à densidade energética da gasolina, e ~  370 W.h/kg para Li-S.

O funcionamento e construção para as baterias de conversão Li-O2 mencionadas ocorre da seguinte forma: tipicamente lítio metálico é usado como eletrodo negativo da bateria, que durante a descarga sofre oxidação liberando íons de lítio (Li+) para o eletrólito. O eletrólito é composto por um solvente orgânico e um sal de lítio e exerce papel fundamental no dispositivo, conduzindo o Li+ para o eletrodo positivo e mediando a reação química. O eletrodo positivo por sua vez, é composto de uma matriz porosa de carbono para que o oxigênio (no caso da bateria Li-O2) possa se dispersar por ele e ser adsorvido na superfície do carbono. Essa matriz também fica embebida pelo eletrólito que conduz os íons Li+ ao encontro do O2 absorvido. Quando se encontram, a reação é espontânea, levando à formação de óxidos de lítio. A composição química do produto para a descarga da bateria irá depender de uma série de fatores, como a natureza da interação do eletrólito com as moléculas, quantidade de O2 disponível e até do potencial elétrico presente. O produto mais comum é o peróxido de lítio (Li2O2) que é um sólido que se deposita sobre a matriz de carbono.  Já o processo de carga para a bateria consiste na decomposição eletroquímica do Li2O2 presente na matriz de carbono, recompondo o O2 gasoso e o Li+, sendo que este Li+ sofrerá redução sobre o eletrodo de lítio metálico. Tal reação não é espontânea e apresenta uma grande barreira de ativação, sendo o principal gargalo para uma maior eficiência de conversão da bateria.

Nesse sentido, as pesquisas realizadas dentro do Laboratório Avançado em baterias (LAB) do Centro de Inovação em Novas Energias (CINE) buscam desenvolver ferramentas que nos permitam visualizar em tempo real tais reações e assim verificar quais fatores estão correlacionados ao controle da reação química. As pesquisas incluem desenvolvimento de dispositivos para testes, estudo de novos materiais catalíticos e condições operacionais para otimizar a performance do sistema Li-O2.

Já o sistema Li-S possui algumas similaridades construtivas, como o eletrodo de lítio metálico e eletrólito orgânico, porém, ao invés de usar o O2 gasoso alimentado externamente, a bateria conta com um eletrodo positivo misturando-se carbono e enxofre (S8) em um sistema fechado. Durante a descarga, os mesmos processos ocorrem, porém o Li+ reage com o S8, formando o produto final Li2S sólido. Na carga da bateria o Li2S é novamente revertido para S8 e Li+. A particularidade desse sistema está nos intermediários dessa reação, sendo eles Li2S8 → Li2S6 → Li2S4, também chamados de polisulfetos, que são solúveis e podem migrar dentro do dispositivo reagindo diretamente com o lítio metálico, diminuindo drasticamente a vida útil da bateria.

Embora as tecnologias de conversão mencionadas tenham um grande apelo para revolucionar a mobilidade elétrica por sua alta densidade energética, há várias questões sem uma simples solução que tornam esse sonho ainda muito distante. As reações químicas internas ao dispositivo, que são responsáveis por sua alta densidade energética, são também o seu calcanhar de Aquiles. Como toda reação química, existe uma barreira de ativação para que ela ocorra, o que limita a sua eficiência global e, principalmente, a sua velocidade de descarga e carga. Dessa forma, essa classe de baterias tipicamente funciona a baixas densidades de corrente elétrica, ou seja, baixa potência, quesito este que vai na contramão do que se deseja para mobilidade elétrica. Além disso, como toda a reação química, controlar a seletividade para os produtos da reação é também um desafio que, caso não seja muito bem resolvido, resulta em reações paralelas indesejáveis e assim, uma perda irreversível ao dispositivo que limita sua vida útil e pode levar a sua falha permanente. Para a bateria Li-O2, por exemplo, além do Li2O2, também podemos ter a formação de óxidos mais estáveis como o Li2O ou subprodutos como o LiOH e LiCO3, dependendo se há contaminantes presentes como H2O e CO2. Tais produtos também são sólidos, porém são mais difíceis de serem degradados quando aplicamos um potencial externo para a carga da bateria. Além disso, a completa reversão do peróxido é um grande desafio.

Nesse sentido, também são desenvolvidas soluções dentro do LAB-CINE utilizando novos materiais ativos que permitam reduzir essa barreira energética para facilitar a decomposição do Li2O2, além do emprego de catalisadores solúveis. Nesta segunda solução, usamos moléculas capazes de sofrer reações de oxirredução reversíveis sendo “ativadas” mais facilmente. Dessa forma, a decomposição do Li2O2 muda de eletroquímica para um ataque químico pelas moléculas “ativadas”, permitindo uma melhor reversibilidade global da reação.

Ainda no contexto do uso de catalisadores, o grupo LAB-CINE visa o desenvolvimento de eletrocatalisadores sólidos, óxidos mistos bifuncionais presentes na matriz porosa de carbono das baterias Li-O2, com intuito de reduzir a barreira energética para a reação química, aumentar a ciclabilidade e estabilidade desses dispositivos. A mais nova linha de pesquisa do grupo está relacionada ao desenvolvimento de um dispositivo em estado sólido, ou seja, sem a aplicação de eletrólitos líquidos, tornando o sistema mais seguro. Neste contexto, os líquidos iônicos sólidos com estrutura cristalina estão sendo estudados como uma tecnologia promissora para aumentar a robustez do sistema. Todas as iniciativas mencionadas serão combinadas para se criar uma nova geração de baterias de conversão além de gerar conhecimento e recursos humanos no cenário nacional que nos permitam buscar nosso espaço na inevitável transição energética.

Gustavo Doubek é professor da Unicamp. Tem graduação em Engenharia Química pela Unicamp e doutorado em Tecnologia Nuclear-Materiais pelo IPEN. Atua como pesquisador do Centro de Inovação em Novas Energias (CINE).

Chayene Gonçalves Anchieta  é pesquisadora de pós-doutorado no Centro de Inovação em Novas Energias (CINE). Doutora em Engenharia Química pela UFSCar. 

Thayane Carpanedo de Morais Nepel  é pesquisadora de pós-doutorado no Centro de Inovação em Novas Energias (CINE). Tem graduação em Química pela Universidade Federal de Viçosa, mestrado em Ciências pelo IQSC-USP e doutorado em Engenharia Química pela Unicamp. 

Agradecimento
Os autores agradecem o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo número 2017/11958-1), a Shell e a importância estratégica do apoio da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), por meio do regulamento da Taxa de P&D.