Alimentação, poder e pseudociências

Por Ángel Calle Collado e Dolores Raigón

A ciência é poder, as pseudociências são crenças. Certo. E, às vezes, interesses das elites, propaganda enganosa e argumentos “científicos” também andam de mãos dadas. Entre 1998 e 2013, a biotecnologia passou a abranger a pesquisa na agricultura, aumentando de 20% para 70%. Na contramão, a agricultura ecológica decresceu nos últimos períodos analisados e nunca ultrapassou 12%.

[Artigo originalmente publicado no El Diario, periódico espanhol, em 30 de abril de 2018. Tradução de Amin Simaika. Agradecemos pela oportuna sugestão de leitura da colega Márcia Tait*, postada em 2 de maio no grupo do Labjor no Facebook.]

A ciência é poder, as pseudociências são crenças. Certo. E, às vezes, interesses das elites, propaganda enganosa e argumentos “científicos” também andam de mãos dadas. Nos últimos anos, tem havido uma ampla gama de publicações de dossiês, blogs, encontros e livros sobre algo fundamental que não conseguiremos mais fazer da mesma forma que fazíamos antes: nos alimentarmos com os sistemas atuais de produção e distribuição. Nisso concordamos muitas pessoas preocupadas com esta situação. Discordamos abertamente que a resposta é apelar, como afirmou Albert Einstein, às mesmas ferramentas que causaram os problemas: insistir nos mercados altamente globalizados, orientados pela biotecnologia e pouco focados na criação de circuitos alimentares mais localizados.

No atual debate sobre a alimentação “do futuro”, alguns mitos estão se formando. Vejamos a que geralmente é a primeira e mais comum crença justificadora promovida pela FAO na reunião realizada em outubro de 2009 em Roma, sob o título “Como alimentar o mundo em 2050”: “O mundo precisa aumentar sua produção de alimentos em 70% até 2050 para poder atender uma população mundial de nove bilhões de pessoas.” O relatório original mostra que o aumento é alegado não porque vamos alimentar a população, mas porque vamos promover a ampliação do atual modelo agroalimentar, que é bastante diferente: a produção de carne aumentará em 200 milhões de toneladas para promover aumentos de entre 25% e 50% do consumo per capita, dependendo dos países. Isso implicará na necessidade de cereais de até 3 bilhões.

Ou seja, independentemente das limitações ambientais e das terras agrícolas disponíveis, devastaremos mais florestas, emitiremos mais metano e continuaremos com um modelo ineficiente de produção de calorias para sustentar uma dieta excessiva, problemática do ponto de vista da saúde e desnecessariamente rica em proteínas de origem pecuária.

Devemos nos lembrar que a dieta de carne contemporânea ocupa um terço das terras cultiváveis e quase a metade dos cereais (para a produção de ração) que são produzidos no mundo. O relatório termina, como consequência de seu devaneio exemplar, exigindo mais energia (eles não sabem que estamos caminhando para um mundo de menor disponibilidade de energia?). E mais portos para o comércio internacional que facilitam um setor agrícola “dinâmico” e aumentam os “investimentos do setor privado” (onde as pessoas continuarão morrendo de fome por causa da apropriação da terra e dos alimentos em prol de um mercado especulativo?). Mas o mantra de 70% da produção permaneceu: objetivo cumprido para as elites das corporações agroalimentares.

Daremos continuidade ao mito que recorrentemente evita a realidade histórica da agricultura ecológica e a apresenta como um “exercício romântico”. Existem referências muito contrastadas que levaram, em 2010, a Olivier de Schutter, como relator especial da ONU sobre o direito à alimentação, a escrever um relatório no qual são necessariamente unidos ao fortalecimento de sistemas agroalimentares locais e ecológicos. Trabalho que foi continuado pela atual relatora Hilal Elver, concluindo em seu discurso em 2017: a agroecologia se apresenta como uma alternativa ao amplo uso de agrotóxicos, promovendo práticas agrícolas adaptadas aos ambientes locais, que estimulam as interações biológicas benéficas entre diferentes plantas e espécies para conseguir um solo saudável e fértil a longo prazo.

A produção ecológica, para além dos nichos de mercado baseados em certificações, é uma realidade e é um futuro possível para sustentar vidas, territórios e o próprio planeta como um todo, como refletido nos  relatórios do IPES (International Panel of Experts on Sustainable Food Systems) ou as recomendações derivadas do comitê que impulsiona a Unesco para a Avaliação Internacional do Papel do Conhecimento, da Ciência e da Tecnologia no Desenvolvimento Agrícola (Sigla em inglês IAASTD).

Recentemente, um artigo de um “divulgador científico” afirma que a manipulação genética é “inevitável … porque a humanidade vem fazendo isso há dez milênios”. O que a humanidade tem feito ao longo da história é a seleção em massa, mas não a manipulação genética. Contribuindo para a confusão, provavelmente por causa de uma grande falta de conhecimento de como as técnicas de hibridização funcionam, o divulgador menciona que a produção de variedades tradicionais e locais é baseada em técnicas ineficientes, tais como a de um “cereal híbrido obtido com um enxerto” (sic), para justificar que nossa comida “se tornará mutante”. Isto é afirmado no contexto de uma publicação com o título de “científica” e que persegue “o desafio de imaginar o futuro”. Argumentos suficientes para tachar a agricultura orgânica como “romântica” e defender “cientificamente” que “a resposta é mais tecnologia”.

Devemos esclarecer essa tendência “divulgadora”. A agricultura ecológica não “teve sua origem” no século XX. É uma realidade histórica de milhares de anos e de culturas que, quando estamos finalmente descobrindo que o planeta impõe seus limites, volta a colocar em prática certos avanços rotulados como “científico-tecnológicos”. A (re)localização de sistemas agroalimentares será reintroduzida como consequência da crescente erosão dos solos, inadequados após terem sido esgotados pela agricultura intensiva (como acontece na Argentina, em Almería ou na desmatada selva amazônica), a menor disponibilidade de petróleo e água, bem como as crises alimentares que estão por vir, as quais provocarão descontentamento e protestos, como tem sido comum nas últimas décadas, as chamadas food wars.

A própria FAO (por vezes contraditória), apelando para a própria experiência do Banco Mundial, confirma a necessidade urgente de investir na agricultura de pequena escala para aliviar a fome e promover a segurança alimentar. Ela reconhece uma diminuição gradual nas taxas produtivas da intensificação derivada da chamada revolução verde. Há algumas semanas, no âmbito do II Simpósio Internacional sobre Agroecologia, em Roma (3 a 5 de abril), conclui que “A agroecologia pode ser fundamental para alcançar um amplo conjunto de metas políticas, ambientais e de segurança alimentar, que vão desde objetivos relacionados à sustentabilidade até a erradicação da pobreza rural.”

Como resume a análise do instituto suíço FiBL publicada na Nature Communications (2016) não é necessário aumentar a área agrícola, mesmo em um cenário de 9 bilhões de pessoas em 2050 (outra hipótese que provavelmente será revisada para baixo nos próximos anos), se optarmos pela produção ecológica, colocarmos os alarmes em 33% do desperdício de alimentos, pararmos a apropriação de terras e facilitarmos o acesso dos pequenos proprietários, ao mesmo tempo em que promovemos um menor consumo de produtos de origem animal que resulte na diminuição progressiva da demanda de rações concentradas. “São produzidos alimentos suficientes para alimentar até 12 bilhões de pessoas, de acordo com dados da FAO”, afirmou Jean Ziegler, relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação entre 2000 e 2008.

Mas não, o lobby que se aproveita das instituições científicas insiste em aclamar a biotecnologia e a subsequente apropriação de terras como solução. Para fazer isso, concilia fatos e abordagens “científicas” que tornam as realidades invisíveis: quer seja selecionando e interpretando erroneamente os dados para dizer que a agricultura ecológica (certificada) é um problema para o planeta; ou difundindo a confusão ao estabelecer ligações entre dois territórios irreconciliáveis, a agricultura ecológica e os transgênicos; ou apoiando campanhas apoiadas pelos principais meios de comunicação que constantemente insistem em dizer que a agricultura ecológica é uma ameaça ao planeta e para nossos corpos.

A ciência (como aparato institucional) na atualidade é um poder com grande capacidade de legitimar o insustentável. Um estudo recente avaliou a disparidade dos apoios que suscita o tipo de agricultura nos planos para impulsionar a ciência na própria União Europeia. Como resultado, entre 1998 e 2013, a biotecnologia passou a abranger a pesquisa na agricultura, aumentando de 20% para 70%. Na contramão, a agricultura ecológica decresceu nos últimos períodos analisados e nunca passou de 12%. Se analisarmos a pesquisa que também é realizada por empresas privadas, apoiadas por planos estatais, a proporção seria de 1 a 9 em favor da agricultura de uso intensivo de produtos químicos e favorável ao setor de biotecnologia transgênica.

Como Thomas Khun afirmou na década de 1960 em seu livro sobre a estrutura das revoluções científicas, os “consensos” científicos surgem como consequência de estudos, sim; mas também por causa de pressões externas ligadas a interesses das elites.

Continuaremos a impor modelos de laboratório às realidades e necessidades das pessoas? Não apenas existe pressão, existem também hábitos de pesquisa e comunidades fechadas que enxergam somente o que já foi comprovado antecipadamente, como argumentou o filósofo da ciência Bruno Latour. Então, o que é pseudociência? Aquilo que é afirmado apelando a critérios “científicos”, mas que não segue um método de construção e verificação científica. É manifestamente aplicável àqueles que podem invocar a ciência para dizer que o câncer pode ser curado pela meditação, por mais que saibamos, segundo a OMC, que nossa pobre saúde mental é a fonte de muitas doenças, especialmente nos países mais ricos. E também as posições daqueles que insistem em repetir argumentos, mantras inquestionáveis desde 2009, como a necessidade de circular 70% mais produtos no atual sistema alimentar. Ou a abordagem das questões alimentares sem considerar como os pesticidas, a atual transformação industrial e as embalagens que chegam às nossas mesas são hoje causas diretas de distúrbios endócrinos, sobrepeso e desnutrição. Ou o jogo da confusão e a omissão repetida dos estudos que contrastam empiricamente as potencialidades dos sistemas agroalimentares ecológicos realocados contra as imposições mercantis globalizadas com uma aposta cega nas tecnologias que estão nas mãos de três empresas: Bayer-Monsanto, ChemChina-Syngenta, Du Pont-Dow Chemical.

A ciência vem se desenvolvendo a partir do estudo sistemático das regularidades com que vivemos e das quais somos os grandes responsáveis (em seus aspectos políticos e socioambientais). O desejo de sistematização e avaliação nos levou ao grupo de pesquisa do Instituto de Sociologia e Estudos Camponeses para acompanhar mais de 100 teses de doutorado em diferentes países sobre a relevância e pertinência da abordagem agroecológica, como pode ser verificado nos arquivos públicos da Universidade de Córdoba. Insistimos: a construção de sistemas agroalimentares viáveis que atendam às necessidades humanas não é patrimônio da comunidade científica voltada à agroecologia. Mas nós estamos desmontando mitos, construindo evidências e contribuindo para criar iniciativas como as emergentes cooperativas agroecológicas ou o Pacto de Milão sobre alimentos locais e ecológicos nas cidades deste país. Por tudo isso, e para discutir até mesmo o foco deste artigo, estamos organizando um Congresso Internacional de Agroecologia em Córdoba, de 30 de maio a 1º de junho. Estão todos convidados.

Ángel Calle Collado é professor de sociologia da Universidade de Córdoba (Espanha), no Instituto de Sociologia e Estudos Camponeses. Pesquisa agroecologia, sustentabilidade, bens comuns e novos movimentos políticos. Site www.deseosenelinsomnio.com

 Dolores Raigón é catedrática da Escola Técnica Superior de Engenharia Agronômica e Meio Natural da Universidade Politécnica de Valência e presidenta da Sociedade Espanhola de Agricultura Ecológica

Leia também:

Dossiê Agroecologia, nº 182, outubro de 2016

Mercadores da dúvida: cientistas contra a ciência, por Camila P. Cunha (Dossiê Especial Divulgação Científica, nº 197, abril de 2018)

* Márcia Maria Tait Lima é graduada em comunicação social, doutora em política científica e tecnológica e pós-doutora em filosofia. É professora no Mestrado em Divulgação Científica e Cultural (Labjor) e pesquisadora, com bolsa de pós-doutoramento da Capes, no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Atua também no Coletivo/Plataforma Sementeia.Org