Por Rafael Evangelista
A rigor, ninguém tem ideia do que vai acontecer daqui pra frente, depois da emergência do SARS-CoV-2. Há vários fatores, ainda incertos, que podem alterar o cenário. Não sabemos na totalidade os efeitos da doença no corpo humano; se as pessoas de fato criam imunidade depois de contaminadas; sabemos que seu surgimento foi natural, mas estamos incertos sobre como e quando surgiu o vírus; e há muito ainda a se descobrir sobre o processo de transmissão, contágio e espalhamento aéreo do vírus pelo ar ou sobre sua vida em superfícies, entre outros fatores. Mas parece que, a depender não só do que ainda temos a descobrir, estamos numa encruzilhada, que se abre por três caminhos em disputa social e política global: a exceção, a ruptura e a aceleração. O desfecho, o pós pandemia, vai estar relacionado a como vamos interpretá-la e enfrentá-la agora, a partir dessas estratégias, que por sua vez estão ligadas a visões diferentes sobre a pandemia.
A exceção acredita e busca afirmar que tudo vai voltar a ser exatamente como antes assim que o vírus passar, que a normalidade não é só algo que desejamos que aconteça, como de fato será materialmente possível fazer o retorno. Então bastariam, para agora, adotar algumas medidas excepcionais que aliviem a dor e as agruras momentâneas (dos negócios, em especial) e buscar o mais rápido possível um ponto de saída. A rapidez se justifica exatamente para que se mantenham as coisas como sempre foram. Precisaríamos voltar rápido ao trabalho porque as empresas não podem falir, para proteger a vida dos CNPJs – como disse cinicamente um empresário da construção civil. As ajudas aos trabalhadores deveriam ser mínimas e pontuais: suficientes apenas para manter o mercado funcionando e limitadas de modo continuarem pressionando as pessoas a arriscarem suas vidas, sejam como empregadas domésticas ou como motoboys. É um misto de estado de negação com pensamento desumanizador sobre quem realmente faz o mundo funcionar. E é a posição do ministro Guedes e daqueles que vem comandando a tragédia brasileira.
Fazer deste momento uma ruptura é o que setores progressistas estão tentando, ainda que com menos coordenação ou projeto de longo prazo. A crise do vírus, para além de tudo, seria um sinal ou um efeito de uma ordem que já era insustentável por si só. O novo corona seria a gota d’água, o sopro no castelo de cartas que é estrutura da economia financeira global, produtor de desigualdades. Prova disso seria o efeito devastador da doença no Sul Global, categoria que engloba não somente territórios onde reina a pobreza, mas populações com recortes específicos de classe, raça e gênero, as quais podem viver vizinhas ou no mesmo território das elites, mas estão a elas subordinadas. Dados do Reino Unido apontam probabilidade de duas a três vezes maior de mortes na população negra, asiática ou outras minorias étnicas do país. O dado se repete para os EUA: em estados como Michigan e Nova Orleans a proporção de mortes por Covid-19 é três vezes maior para a população negra. São os setores sociais historicamente desprivilegiados, que vivem nas piores condições e menor acesso à saúde os mais vitimados.
Para os progressistas que apontam que o caminho é a ruptura, só vamos sair dessa situação, ou prevenir que eventos similares ocorram no futuro, criando outras estruturas sociais. Apropriadas para esta crise, mas que deveriam se tornar permanentes, pois são mais justas, ecológicas e sadias. É a luta contra o 1%, pela redistribuição das riquezas e em parte (porque não devemos ignorar sua apropriação e eventual desvirtuamento) por pautas como a renda básica universal.
A aceleração, por sua vez, tem na mentalidade das empresas do Vale do Silício a sua melhor representação. A crise seria uma oportunidade para por em marcha mais acelerada processos que já se anunciavam, já eram objeto de desejo e plano desses atores, mas que ainda estavam em fase de consolidação. Coisas como a educação a distância, movida a capitalismo de vigilância, ou o home office, que aprofunda a exploração do tempo do trabalho e transfere custos fixos de estrutura ao trabalhador (aluguel, luz, internet etc). Presos em casa, somos reféns de ferramentas da computação que nos permitem viver em uma simulação de normalidade por meio de contatos-distantes. Fazemos reuniões em que não nos encontramos, damos aulas para alunos que não conseguimos ver. Na educação básica, um “eu finjo que aprendo e você finge que me ensina: sistemas são implementados às pressas, para crianças que mal tem computador ou conexão. Todos assistidos por adoráveis máquinas. Os donos dessas máquinas, os controladores das redes que as comunicam, lucram com a explosão de dados comportamentais que correm por suas veias.
A emergência e as urgências do momento criam esse ambiente, em que testes de novas estruturas pensadas para o futuro acontecem agora, no presente, tendo o mundo como laboratório. Já era uma tendência do mercado, já vínhamos ouvindo falar em economia movida a dados ou capitalismo de plataformas. O coronavírus se torna oportunidade para um empurrão definitivo.
Sempre esteve nas práticas do grupo da aceleração o estado de exceção permanente, mas antes este era restrito a lugares ou sujeitos excepcionais, como o Sul, a extrema pobreza ou o terrorismo. No 11 de setembro, já ouvimos que era preciso permitir a espionagem em massa para vencer o terrorismo. As populações mais carentes, alvo de programas sociais focalizados, já vivem situações de controle social informacional mais exacerbado, justificado pelo uso parcimonioso de recursos ditos escassos. O argumento da aceleração será não só pela impossibilidade da volta ao “normal” como pela insuficiência dele, dada a sombra do retorno da doença. O movimento de pessoas não poderá ser descontrolado (ou não vigiado) porque certas áreas serão tomadas como não-seguras. A proximidade deverá ser ou evitada ou planejada para que se o contato com contaminados não aconteça.
No centro dessa estratégia de combate à pandemia ou de criação de um novo futuro estão políticas informacionais. Enquanto os que pretendem uma ruptura veem problemas econômicos estruturais, a aceleração trata tudo como um problema informacional. Adaptando o ditado, para quem vende martelo todo problema é um prego. As estratégias informacionais, com coleta de dados – que sempre tropeçam em problemas de vigilância –, estão na linha de frente do solucionismo apresentado por esses atores. São os telefones celulares como extensões do corpo, as antenas telefônicas que triangulam a posição/movimento de aparelhos/pessoas, o bluetooth que permite identificar com quem você cruzou.
O problema é que a informação é só parte da solução do problema, que envolve a criação de estratégias coletivas, e não somente indivíduos agindo de forma auto-interessada a partir desses dados. É preciso haver coordenação e apoio aos sujeitos, que converjam para o interesse mútuo pela vida. E, a longo prazo, se vamos adotar novas soluções tecnológicas para o ensino e o trabalho, por exemplo, temos que fazê-lo preservando direitos dos trabalhadores e dando espaço e apoio a formatos de ensino que possam ir além da memorização de conteúdos.
A China, em particular, tem sido usada como ameaça de uma versão cruel de um futuro inexorável. Atribuiu-se muito de seu sucesso no combate à pandemia a uma estratégia coletivista e invasiva em termos tecnológicos, sem que sejam dados muitos detalhes a nada que vá além disso. Mas como as Big Techs não pretendem repetir o Estado chinês em termos de bem-estar social, essa imagem acaba sendo usada para dizer: precisamos de um alto nível de acesso aos dados, mas prometemos sermos bonzinhos (“don’t be evil” era o lema do Google até recentemente). Com alto desenvolvimento tecnológico e uma elite formada e bastante conectada com a mentalidade do Vale do Silício, a China talvez possa ser colocada no mesmo grupo pela aceleração. Porém, sua história, cultura e estrutura organizacional-social certamente significam uma aceleração com outras ênfases. Seu modelo econômico, ainda que usando fortemente de tecnologias de controle cibernético, a princípio significa um rompimento com as estruturas globais dominantes. A questão é a que cenário global leva a ruptura chinesa, o que também parece estar em disputa.
É claro que esses grupos não são estanques e contém intersecções, eles são aqui divisões tipificadas para navegarmos melhor pelo momento. Por exemplo, tanto os que advogam que este é um momento de exceção como os que buscam a aceleração entendem que os tempos são excepcionais, mas só o primeiro tem no horizonte uma volta à “normalidade”, seja por entender que isso será possível ou porque se sentem inseguros com o que vem por aí. Home office e tecnologias aplicadas à educação podem ser coisas importantes para uma ruptura contra a velha ordem do 1%, mas é preciso ter claro que, a depender de como forem adotados, podem significar uma piora distópica das atuais condições, apontando para muito mais controle. A renda básica, igualmente, pode ser ferramenta de distribuição de riquezas tanto quanto de expansão definitiva do mercado na saúde, educação, segurança etc. Não é à toa que, inicialmente, setores tentaram chamar o auxílio emergencial aprovado pelo Congresso de “coronavoucher”. Os vouchers são uma ideia neoliberal de expansão do mercado no setor de educação e saúde e não uma política de bem-estar social. A disputa pelas palavras também é uma disputa política.
As peças estão se movendo rapidamente e a ideia de que este é só um momento passageiro de exceção parece se enfraquecer dia a dia. O que vai resultar nisso tudo tende a vir justamente do que vai ser negociado e imposto pelos atores que se ligam aos três cenários, confrontados com a materialidade do isolamento e das mortes causadas pelo vírus. Os patrões de todo o mundo demandam a ação das massas agora semi-confinadas, quase numa greve involuntária em que o único trabalho possível é o mediado por plataformas. Como sempre ele, o trabalho, se mostra motor da história humana e chave para se entender a política.
Rafael Evangelista é antropólogo, pesquisador do Labjor e professor do programa de pós-graduação em Divulgação Científica e Cultural da Unicamp. Autor de Para Além das Máquinas de Adorável Graça: cultura hacker, democracia e cibernética