Por Marcus C.R. Teshainer
Não podemos ser ingênuos em acreditar que as políticas de gestão e concepção da produção e transmissão do saber são sem consequências. O adoecimento da população acadêmica está aí para mostrar que algo não está bem na maneira como a academia está sendo desenhada. Talvez o foco devesse ser muito maior no desejo presente em quem escolhe pesquisar, ou ensinar, do que nos números que representam uma produção desencarnada.
Em um dossiê sobre saúde mental sou convocado a escrever sobre adoecimento no ambiente acadêmico, um tema que me toca profundamente, não só por esta ser uma questão teórica que envolve a psicologia social e do trabalho, mas por eu ter circulado durante vinte e cinco anos pela academia. E ter adoecido.
As abordagens são inúmeras no tratamento do problema. Podemos pensar desde as questões referentes à pesquisa científica, e seu suposto desvalor por parte dos governantes do nosso país, até ao uso e abuso de drogas em ambiente acadêmico, que a despeito do que pensam alguns dos governantes, é um sintoma, e não uma falta do que fazer.
Mas escolhi, conforme os muitos anos na academia me ensinaram, começar fazendo uma pesquisa, desta vez nada exaustiva, sobre o que se tem escrito a respeito do tema nos últimos anos.
Grata surpresa a minha ao descobrir que se tem uma larga bibliografia a respeito, com diversas entradas, mas sempre fazendo uma separação necessária entre o adoecimento do graduando, que tem características muito específicas se comparado com aquele que escolheu a academia como trabalho, como profissão – o professor pesquisador.
Vou começar por este, pois é também com ele que mais me identifico. O adoecimento que vem de uma separação impossível, ou pouco provável: a separação entre docente e pesquisador. Como escolher ser pesquisador, quando não se tem nenhuma vocação docente?
Esta foi a pergunta que me perseguiu por muitos anos. Enfrentar uma sala de aula, corrigir provas, orientar trabalhos não tem nada haver com sentar em frente a um livro, a uma pilha de artigos, ler, ir a campo, pensar, refletir e escrever. São competências completamente diferentes e nem sempre complementares.
Era comum ouvirmos na época da graduação alguns comentários que nós, debutantes da vida acadêmica, costumávamos fazer de professores dos quais tínhamos lido os livros, mas cujas aulas nos decepcionavam: “Ele é ótimo, mas não sabe dar aula”.
Bom, aqui já temos um conflito: a obrigação de quem escolhe a vida acadêmica de pesquisar e dar aula, enfrentar o aluno, a classe, os trabalhos, as avaliações. A frustração pode ser certa se o candidato espera entrar em um laboratório, lançar suas questões e se ver obrigado a subir no palanque de uma sala de aula, empenhar a voz diante de uma plateia e explicar para os novatos o bê-á-bá da sua ciência.
Talvez eu esteja sendo extremamente personalista e pode ser que esta não seja nem uma questão para quem enfrenta a academia. Talvez, quando se escolhe, já se sabe algo sobre a docência e pesquisa. Então como alguns pesquisadores estão vendo este adoecimento?
O tema que indico acima realmente não é recorrente nos relatos de pesquisa que tive acesso, o que pode indicar que este é o formato estabelecido e a respeito dele não se faz questão. A maioria segue pela linha do produtivismo, da competição e da precarização da profissão que são características que autores como Janete Leite (2017) nomeia como consequência do gerenciamento da universidade.
Esse gerenciamento tem história e ideologia. Segundo Leite (2017) e Oliveira, Pereira e Lima (2017), ele começa no governo Fernando Henrique Cardoso, cuja inspiração neoliberal vê nos índices de produtividade mais interesse do que a qualidade do material produzido pela academia brasileira. Essa toada segue no governo Lula, e avança até o governo Dilma.
Quais as consequências desse gerenciamento para a saúde do pesquisador e do professor universitário? Segundo as autoras, muitas. A começar pelas condições de trabalho. Agora, com base em avaliações de índices de produção, são obrigados e participar de muito mais congressos, escrever muito mais artigos, se preocupar com o ranking da revista, e fazer isso tudo com prazos apertados dentro de critérios quantitativos de mensuração.
Essa situação gera na academia uma competição por pontos, que são condições necessárias para financiamentos e ascensão na carreira. Segundo as autoras, instala-se portanto uma situação discrepante para o trabalho em pesquisa que deveria ser colaborativo – o isolamento e uma redução do trabalho coletivo.
Nesse contexto, um dos efeitos colaterais é uma rígida hierarquização do meio acadêmico que acaba estabelecendo relações bastante perversas na busca por prestígio, ou melhor, por pontuação. Atividades como a de professores assinando trabalhos que não escreveram, grupos de pesquisa em que enormes contingentes de pesquisadores pós-graduandos se submetem a exaustivos trabalhos de pesquisa sem remuneração, apenas em troca de prestígio e reconhecimento na hierarquia passam a ser comuns.
Mas então, quais são as consequências desse quadro para a saúde psíquica dos trabalhadores da academia? Aí temos uma unanimidade entre as pesquisas: esgotamento emocional, falta de realização profissional, despersonalização e cosificação das relações humanas são os principais relatos.
Os motivos que geram essas situações talvez não sejam difíceis de deduzir. O primeiro cenário que descrevi, da impossibilidade de escolha pela pesquisa ou pela docência, somado com a pesquisa fatiada, ou seja, a necessidade de publicar relatos parciais de pesquisa para poder “pontuar no Lattes”,que gera um exaustivo trabalho ao pesquisador, e que ao ter de fazer uma revisão bibliográfica se vê diante de um oceano de repetições e artigos inúteis, somado com a administração constante das relações na hierarquia e ao constante assédio moral a que alguns são submetidos explica os motivos do esgotamento emocional e a falta de realização profissional.
A despersonalização e a coisificação das relações humanas se dão em consequência da rígida hierarquização e da exigência produtivista em que os envolvidos passam a se ver como peça de uma grande engrenagem. Assim se exige deles pelos seus superiores e assim passam a exigir daqueles que buscam ascensão hierárquica.
Oliveira, Pereira e Lima (2017) lembram a importância do trabalho na emancipação humana. Através dele produz-se intercâmbio social, transforma-se a natureza, há a criação de coisas uteis e necessárias. Porém, o trabalho intelectual, por se assemelhar a um trabalho abstrato, perde reconhecimento social, o que gera no trabalhador acadêmico um desconhecimento do que produz, muitas vezes gerado por uma perda de sentido das suas pesquisas que são reduzidas a índices numéricos – sem que o pesquisador possa ver os desdobramentos sociais do seu trabalho.
Outro ponto importante na geração de transtornos psíquicos, como nota Leite (2017), e que se verifica principalmente por conta do produtivismo é uma indissociação do tempo-espaço da vida acadêmica, da familiar e da pessoal gerando uma ausência de descanso laboral nos finais de semana. É, como nota Oliveira, Pereira e Lima (2017), um apagamento da fronteira entre o espaço de trabalho e a residência.
As consequências dessa situação são inúmeras, mas relato algumas mais frequentes descritas nos artigos que consultei. O aumento do consumo de álcool, drogas e tabaco, como válvulas de escape para um prazer imediato, já que não se encontra o prazer no tempo de descanso. Depressão, que pode ser gerada pela falta de sentido do trabalho, ou pelo excesso de trabalho agregado à pesquisa, como preenchimento de formulários, relatórios, obrigações burocráticas, ou pelo isolamento relacional que o ambiente competitivo provoca.
Na outra ponta, como mostra a pesquisa de Ariño e Bardagi (2018), há uma outra série de situações que atingem a população de graduandos, tanto os calouros, quanto aqueles que estão no final do curso.
Para os primeiros, a diferença discrepante do ambiente universitário e o escolar causam, de partida, um impacto que obriga o aluno a ter de se adaptar a uma realidade totalmente nova para ele. Mudanças de horários, carga horária estendida e exigência de desempenho que produzem um ritmo ampliado de trabalho.
Durante o curso a tendência é de agravamento, com a carga cada vez maior de leitura e atividades acadêmicas e principalmente pela aproximação de decisões que envolvem a escolha da carreira. Situação que as pesquisadoras nomeiam como autoeficácia, ou seja, a possibilidade do graduando de gerir seu tempo e sua carreira, estabelecendo prioridades e escolhas.
Já para os graduandos de último ano e egressos, a situação se estabelece ao se depararem com o mercado de trabalho e realizarem escolhas para o futuro profissional. Esses são fatores estressantes que podem resultar em depressão ou na formação de um autoconceito depreciado, se o aluno não conseguiu, durante o curso, pensar-se profissionalmente.
As pesquisadoras sugerem que deveria haver um trabalho maior, tanto das instituições de ensino, quanto da universidade, de preparar melhor esses jovens para escolher suas carreiras, tanto na hora de decidir por um curso, quanto, durante a universidade, pensar a carreira e se preparar para ela.
De fato, uma escola voltada, ou obrigada a se voltar mais firmemente ao conteúdo das provas de ingresso na universidade não consegue transmitir a importância do trabalho na formação do homem social e da possibilidade de emancipação humana que o trabalho promove.
Quando conteúdos disciplinares estão desconectados de uma formação ampla de conhecimento e atuação na realidade, em outras palavras, quando os conteúdos disciplinares são encarados de maneira pragmática a fim de avaliar apenas a capacidade de utilizar competentemente conceitos e fórmulas para atingir fins específicos – passar no vestibular, por exemplo –, perde-se a possibilidade de emancipação do sujeito, de escolher o lugar que quer ocupar no contexto social e comunitário.
No que se refere ao trabalho acadêmico, ou à escolha de trabalhar como docente ou pesquisador, ou mesmo docente pesquisador, a academia talvez precise se debruçar mais atentamente sobre as consequências, tanto para a ciência como um todo, quanto para as pessoas que escolhem esse caminho, de uma política gerencial que apaga o desejo de transformação social e transmissão profissional daqueles que escolhem o ambiente acadêmico como lugar de exercício profissional.
As pesquisas a que tive acesso me permitiram pensar a importância de deixar de culpar os membros da academia pelos seus insucessos. Não podemos ser ingênuos em acreditar que as políticas de gestão e concepção da produção e transmissão do saber são sem consequências. O adoecimento da população acadêmica está aí para mostrar que algo não está bem na maneira como a academia está sendo desenhada. Talvez o foco devesse ser muito maior no desejo presente em quem escolhe pesquisar, ou ensinar, do que nos números que representam uma produção desencarnada.
Marcus Cesar Ricci Teshainer é psicanalista, mestre e doutor em ciências sociais pela PUC-SP com pós doutorado em psicologia clínica pela USP e autor de O gesto sem fim – Notas de um psicanalista lendo Agamben.
Referências
Leite, J. L. Publicar ou perecer: a esfinge do produtivismo acadêmico in Revista Katálysis, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 207-215, maio/ago. 2017
Oliveira, A. S.; Pereira, M. S. ; Lima, M. L. Trabalho, produtivismo e adoecimento dos docentes nas universidades públicas brasileiras in Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 21, Número 3, Setembro/Dezembro de 2017: 609-619
Ariño, D. O.; Bardagi, M. P. Relação entre Fatores Acadêmicos e a Saúde Mental de Estudantes Universitários Psicol. Pesqui. Juiz de Fora, 12(3), 44-52, Setembro-Dezembro de 2018.