A indústria dos games no divã: a polêmica da violência

Por Allison Almeida, Erica Mariosa e Graciele Almeida de Oliveira

A violência advém de inúmeros outros fatores, como a desigualdade social. Em casos específicos, o videogame pode ser um gatilho para a violência, mas esse gatilho poderia ser disparado por qualquer outro produto da indústria cultural, pois envolvem indivíduos com histórico de transtornos ocasionados geralmente por relações não saudáveis com familiares e pessoas ao redor.

Em 1962, o escritor inglês Anthony Burgess escrevia Laranja mecânica, um marco na história da literatura, e que ficou imortalizado nos cinemas pela adaptação realizada pelo diretor Stanley Kubrick, em 1971. A distopia ficcional criada por Burgess, entre outras temáticas, disserta sobre um grupo de adolescentes londrinos que tem como principal forma de diversão a selvageria desmedida e sem propósito. Em Laranja mecânica nascia a expressão ultraviolence, um termo que depois foi adotado para referenciar o excesso de violência em obras artísticas e produtos da indústria cultural.

Mais de cinco décadas após a obra, a representação da violência para fins de entretenimento ainda é uma temática discutida por cientistas sociais, psicólogos, educadores, comunicadores, profissionais de publicidade e marketing.

A discussão se ampliou, pois a indústria desenvolveu novas formas de entretenimento, como os jogos de videogame que utilizam a representação da violência como um dos principais fatores atrativos. Desde Magnavox Odyssey, o primeiro console lançado no mercado em 1972, até o Playstation 4, o lançamento mais recente, a indústria dos games vem evoluindo não só em quesitos técnicos, mas aumentando consideravelmente sua participação na economia. Segundo estudos da consultoria de investimentos Digi-Capital, esse mercado deverá faturar U$100 bilhões em 2017.

Uma boa porcentagem desses expressivos números se deve a jogos polêmicos como a franquia Grand Theft Auto (GTA).  GTA V, o último jogo da série, já arrecadou mais de US$ 3 bilhões desde o lançamento e vendeu mais de 60 milhões de cópias em todo o mundo. Nesse jogo, para progredir no universo fictício, o jogador recebe missões como realizar crimes de tráfico de drogas, assassinato, prostituição e roubo de carros.

Apesar de atual, a discussão sobre o excesso de violência nos enredos de jogos virtuais não é nova. Na primeira década dos anos 1990, com evolução de processamento dos consoles como o Super Nintendo e Megadrive, a violência começou a mudar de patamar. Também foram lançadas no período grandes franquias como Mortal kombat, Doom e Killer instinct, que fizeram da violência, mais que um acessório, um dos principais atrativos gráficos para os jogadores. Pensando no universo infanto-juvenil, foram criadas em todo o mundo, inclusive no Brasil, classificações etárias para o games.

Difundiu-se desde então o senso comum de que as mídias, como os videogames e mesmo séries e filmes que acabam usando de extrema violência, são estimulantes para comportamentos violentos de crianças e adolescentes. Mas o que os cientistas e pesquisadores pensam da questão?

“Desconheço pesquisas na área de psicologia que apontem a relação direta entre a utilização de jogos eletrônicos e aumento substancial dos casos de violência”, afirma Gabriel Arantes Tiraboschi, doutorando em psicologia pela USP e pesquisador do desenvolvimento de habilidades cognitivas e perceptuais promovidas com a prática com videogames de ação. “Esse caso específico dos videogames parece ser um fenômeno que alguns teóricos chamam de moral panic theory. Quando acontece algo muito ruim na sociedade, como o aumento da violência, as pessoas tendem a eleger uma espécie de ‘vilão’ como bode expiatório de uma realidade complexa, com inúmeras variáveis, para ter a falsa impressão de que, o eliminando, tudo estará sob controle”.

Claudemir Edson Viana, professor do curso de licenciatura em educomunicação na Escola de Comunicações e Artes (USP) e um dos principais nomes brasileiros da pesquisa de games e educação, é outra voz na academia que não vê relação direta entre games e violência. “A questão da banalização da violência precisa ser compreendida como um processo sócio-histórico-cultural porque estamos numa sociedade onde ela foi banalizada. A violência advém de inúmeros outros fatores, como a desigualdade social. Em casos específicos, o videogame pode ser um gatilho para a violência, mas esse gatilho poderia ser disparado por qualquer outro produto da indústria cultural, pois envolvem indivíduos com histórico de transtornos ocasionados geralmente por relações não saudáveis com familiares e pessoas ao redor”.

Caio Yo, professor de design de games, concorda com os especialistas, e relembra experiências com jovens que manifestaram um lado violento. “O desenho, o jogo e o quadrinho não são a causa, mas a forma como o jovem se relaciona com esses produtos é consequência de algo que ele está vivenciando ou do caráter que está sendo formado”, aponta o designer.

Apesar de acreditar que os jogos não estimulam a violência, Caio Yo não concorda com a forma como a indústria utiliza o discurso da ultraviolência nos enredos. “Eu procuro escolher os clientes e projetos em que vou participar. Com meus desenhos e produções, estou me comunicando e preciso me preocupar com quem consome minhas produções. O profissional que está começando não consegue escolher, mas com o tempo é preciso se colocar e pontuar com qual narrativa você quer que seu conteúdo seja relacionado. Não podemos fazer trabalhos que confrontam nossos ideais”.

Yo também chamou a atenção para a existência de “carpas nadando contra a corrente”, ou desenvolvedores de jogos preocupados com a ultraviolência, que propõem, em algumas produções, a escolha para o jogador sobre atuar no papel de herói ou o de opressor, provocando, assim, a reflexão e a discussão sobre o assunto. De acordo com o site do console PlayStation, Life is strange, Until dawn e Undertale são exemplos de sucesso desse tipo de game, com mais de 1 milhão de downloads.

A catarse nos jogos

A teoria hipodérmica da comunicação surgiu no período entre guerras, 1920-1930, e propunha uma relação de causa e efeito em relação às pessoas com os produtos culturais, como se a comunicação fosse capaz de inserir conteúdos no organismo, feito agulha hipodérmica. As teorias da comunicação evoluíram com o tempo, a partir de estudos sobre a mídia, e concluíram que os consumidores da indústria cultural não são apenas receptores passivos, mas indivíduos capazes de interagir, significar e ressignificar as informações presentes nas mídias durante o processo comunicativo.

Em 2014, o pesquisador Christopher J. Ferguson publicou um estudo em que fez um levantamento estatístico da quantidade de jogos violentos consumidos e a taxa de violência entre os jovens entre os anos de 1966 e 2011. Fergunson encontrou uma relação inversa entre os dois, de forma que a quantidade de games consumidos entre os jovens aumentou, enquanto a quantidade de atos violentos cometidos entre eles diminuiu.

Sobre a relação entre o videogame violento e a violência juvenil, Claudemir Viana explica: “O que ele (o jogador) vive é a imersão no game, no personagem e na disputa, como algo similar na projeção desse sujeito na personagem de um filme que interesse. A psicologia demonstra que, ao fazer essa projeção de si nos personagens, nas disputas e no processo de ganho ou perda, ele está executando um processo de projeção, compensação, gozo e catarse. Esse processo não é negativo, mas positivo. De alguma forma, ele está simulando e lidando com os próprios sentimentos de forma lúdica, que é fundamental para o desenvolvimento humano, capaz mais de uma sublimação dos sentimentos reais como angústia, opressão, frustração e depressão, e dos problemas da realidade”.

Games, competição e comportamento

Para os especialistas ouvidos pela reportagem, existe um grande erro de avaliação por quem considera os games fatores estimulantes para o desencadeamento da violência. O videogame, como qualquer outro jogo virtual ou não, deve ser encarado como uma espécie de competição, tendo um caráter benéfico para quem o pratica. “O que é um jogo, em sua essência? Um gatilho para você se superar e ultrapassar barreiras antes limitativas. O jogo é importante para o desenvolvimento de crianças e jovens, porque ensina regras e limites num ambiente seguro”, explica o psicólogo Gabriel Tiraboschi.

Para o estudioso, os pais ou responsáveis precisam se atentar para a questão da competitividade em relação ao comportamento, pois em excesso pode ocasionar problemas a quem joga, independente do grau de violência gráfica do game. “Todo jogo tem um elemento competitivo. O que estudos na área de psicologia têm mostrado é que esta questão específica, se mal trabalhada, pode causar algum grau de frustração, e gerar um comportamento agressivo, mas esse comportamento necessariamente não está ligado com violência nos games”.

Allison Almeida é graduado em jornalismo (Unicap), pós-graduado em gestão e produção em jornalismo (Puccamp) e pós-graduando em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

Erica Mariosa Moreira Carneiro é graduada em relações públicas (Puccamp) e pós-graduanda em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.

Graciele Almeida de Oliveira é bacharel em química (USP), doutora em ciências – bioquímica, graduanda no curso de licenciatura em educomunicação (USP) e pós-graduanda em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.