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Em grandes cidades, interesses do cidadão
estão em segundo plano

Até o final do ano, estará nas livrarias o terceiro volume do livro As Geografias de São Paulo (editora Contexto), lançado pela professora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), Ana Fani Alessandri Carlos. Nos dois primeiros volumes da coleção, foram reunidos artigos de 36 professores do Departamento de Geografia da USP, resultado de décadas de pesquisa e reflexão sobre a cidade de São Paulo. O terceiro volume é uma coletânea de textos apresentados no seminário "São Paulo 450 anos: As geografias da metrópole", realizado em setembro na USP. Os autores que participaram do seminário abordaram as transformações que São Paulo vem passando nas últimas décadas e como os interesses do capital financeiro coexistem e se sobrepõem aos interesses do cidadão metropolitano. Tal análise permite traçar um paralelo com outras metrópoles mundiais, como Barcelona e Buenos Aires. De acordo com a pesquisadora, a vida cotidiana do cidadão é fortemente afetada, transformando o espaço geográfico em lugar da realização do capital financeiro e, conseqüentemente, em um espaço sem cidadãos.

ComCiência: Qual é o tema tratado no terceiro volume da As Geografias de São Paulo?
Ana Fani Carlos: O livro foi escrito por professores do Departamento de Geografia da USP e por professores estrangeiros que participaram do seminário "São Paulo 450 anos: As geografias da metrópole". A obra tem uma dupla orientação. A primeira é discutir São Paulo e a segunda é discutir a universalização do conceito de metrópole, a partir de uma comparação fundamentalmente entre Barcelona e Buenos Aires, e como os geógrafos urbanos estão pensando essas duas cidades. A questão era colocar como os processos metropolitanos estão ocorrendo em metrópoles diferenciadas. Assim, observamos que estamos vivendo o mesmo processo e, é lógico, com articulações políticas e econômicas diferentes. Tem a história do lugar que faz com que os processos mundiais e gerais ocorram de modo diferenciado, assim Barcelona é vista como um modelo paradigmático nesse processo. Os processos que definem a funcionalidade dessas duas metrópoles não são iguais. O que eu posso dizer é que o processo de reprodução hoje, passa pelo espaço.

ComCiência: E o que Barcelona revela na sua plenitude?
Ana Fani Carlos: Barcelona é entendida como a transformação da cidade em mercadoria. O modelo Barcelona é vendido no mundo todo como uma cidade bem administrada e moderna, cuja gestão tem que ser copiada em outros lugares. Assim a cidade de Barcelona aparece como um modelo padrão para o mercado mundial. No mundo moderno se vende muita coisa, inclusive a cidade. O problema é que o modelo Barcelona não se encaixa na realidade de São Paulo. Todavia existe um diálogo no plano da administração com o modelo Barcelona. É possível ver os consultores catalães no mundo inteiro vendendo suas idéias, assim como já estiveram no Brasil.

ComCiência: E em São Paulo, o que temos?
Ana Fani Carlos: Você não tem a venda da cidade, mas tem, por exemplo, um processo de realização do capital financeiro que para continuar se reproduzindo precisa do espaço e, para isso, são criadas formas, materialidades, infra-estruturas. O capital financeiro está, no eixo da Faria Lima e da Berrine [duas grandes avenidas de São Paulo], realizando-se de um modo diferente. Hoje, não se pensa apenas no capital financeiro no Brasil. Existe um desenvolvimento da economia, que se faz num novo setor econômico, que é o setor de turismo e de lazer que também se reproduz na cidade, ele interfere no processo de construção. E por último temos o narcotráfico que é uma nova forma de economia. Se você combater o narcotráfico entra em colapso o sistema financeiro mundial. Então para pensarmos como o capitalismo se realiza, partimos de três setores econômicos. O setor financeiro, o turístico e o narcotráfico. É a partir desses três elementos que a economia se realiza.

ComCiência: Alguns autores afirmam que o tempo é um fator mais importante do que o espaço no processo de reprodução das relações sociais. Como a senhora vê essa questão?
Ana Fani Carlos: Muitos autores defendem o período pós-moderno como uma transformação do tempo. O tempo hoje é veloz, efêmero e fugaz. Mas ninguém pensa o espaço. Eles definem o momento como um tempo que se transforma. Porém eu discuto no meu livro Espaço e Tempo na Metrópole (editora Contexto) que o período que nós estamos vivendo não se define apenas por uma transformação no tempo, mas uma nova relação espaço-tempo, onde o tempo pode ser qualificado de veloz, mas o espaço, é o lugar de reprodução. Isso eu chamo de "espaço amnésico", ou seja, um espaço urbano sem referência. Este conceito revela justamente as grandes cidades, que é o espaço urbano dos negócios, ou seja, uma cidade que não é voltada para a vida urbana, mas para a reprodução do negócio e para a reprodução econômica. O capital financeiro aliado ao Estado arrasa as operações urbanas da cidade.

ComCiência: Seguindo essa linha de raciocínio, como fica o lazer nas grandes cidades hoje?
Ana Fani Carlos:
Não existe mais espaço nas cidades para a vida. A vida está circunscrita a espaços privados ou semipúblicos. Só tem lazer na cidade hoje quem pode pagar. O lazer, assim como o momento de não trabalho que deveriam acontecer na vida da cidade agora só podem acontecer no mundo da mercadoria, ou seja, o lazer passa a ser mercadoria. Os bares, os parquinhos, tudo é pago. Os cinemas sumiram do centro e, como se não bastasse, você assiste ao filme que eles querem, ou seja, os filmes que dão bilheteria. Se você tem dez cinemas no shopping, em cinco estarão passando Harry Potter e, nos outros cinco, Homem-Aranha. Isso tudo significa que a cidade se reproduz por um empobrecimento das relações sociais, cooptado pelo mundo da mercadoria e pela produção da cidade dos negócios.

ComCiência: Como podemos pensar a cidade de São Paulo hoje?
Ana Fani Carlos:
Eu estudo São Paulo com uma análise das transformações atuais no espaço, a partir de uma articulação entre as políticas urbanas, interferindo no processo de produção da cidade, voltada para a economia global e, nesse processo, como a cidade se reconstrói, como o plano político se articula ao plano econômico e como esse processo produz a cidade numa direção que caminha num sentido contrário as necessidades e desejos da sociedade. Num conflito que aparece entre o Estado e os movimentos sociais que acontece na área de construção do novo eixo empresarial da metrópole, o eixo da Faria Lima - Berrine. No meu livro Espaço-Tempo na Metrópole, eu aponto a articulação entre o plano econômico e político e como isso rebate na vida cotidiano dos bairros afetados no processo. As operações urbanas aconteceram com muita força nesse momento, anos 90, seja com a operação Águas Espraiadas [atual avenida Roberto Marinho] ou com a operação Faria Lima. A operação urbana Faria Lima é central para explicar esse processo e essas articulações.

Leia mais sobre o assunto:

-Brasil sugere retirar investimentos em habitação do cálculo da dívida externa

-Regiões metropolitanas precisam de administração conjunta

-ComCiência sobre Cidades


Para saber mais:

CARLOS, A. F. A., OLIVEIRA, A. U.
-As Geografia de São Paulo. A metrópole do século XXI. São Paulo: Editora Contexto, 2004.

CARLOS, A. F. A., OLIVEIRA, A. U.
-As Geografias de São Paulo. Representação e crise. São Paulo: Editora Contexto, 2004, v.1.

Atualizado em 15/10/04
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